Longe se vai o tempo em que o professor José Sérgio Matta lecionava português aos meninos da Escola Estadual “Alexandre Von Humboldt”, na enevoada São Paulo daqueles anos antigos. O colégio ficava na Vila Anastácio, velho reduto de expatriados húngaros e lituanos, às margens do rio Tietê e junto à ponte do trem que ligava o bairro da Lapa às regiões periféricas da cidade. Tempos em que a capital paulistana ainda era conhecida como “a terra da garoa”, sem tantas intempéries, sem tanta poluição, sem tanta violência. Eu tive o privilégio de estudar nessa escola pública, de uniforme azul e tudo, na época em que os professores eram mais respeitados em sala de aula e seus pupilos saíam até que bem preparados para encarar os vestibulares.
Minha satisfação maior, porém, foi a de ter sido aluno do “professor Serjão” – era assim que o chamávamos -, e poder ouvir, durante três anos letivos, as preleções linguísticas desse notável mestre de voz vigorosa, cuja presença nunca se apagou em mim. Com seu jeito severo de ser, talvez por mera estratégia docente, José Sérgio Matta tinha natural vocação ao magistério. Exímio gramático e latinista, ele nutria particular apreço pela literatura, a ponto de deixar transparecer, na gravidade de seu rosto, resquícios de uma nostalgia atávica, sempre que declamava os versos de algum poeta que lhe tocava a alma. Nunca me esqueço quando nos apresentou Tomás Antônio Gonzaga, Álvares de Azevedo, Fagundes Varella, Cruz e Souza, Augusto dos Anjos, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, em meio a outros grandes escritores brasileiros.
E sua missão não era nada fácil, reconheço. Despertar o gosto pela leitura nos filhos de imigrantes e de operários parecia, de fato, um trabalho de Sísifo. Mas o mestre não esmorecia. Enérgico, aquietava a turma nas carteiras e, com um sorriso sisudo, injetava na garotada doses homeopáticas de acentuação, concordância nominal, conjugação verbal, figuras de linguagem e, principalmente, literatura. Sim, a literatura…. Era este o caminho que nos levaria – segundo suas próprias palavras – à compreensão do mundo e, mais tarde, da alma humana. Como forma de estimular a classe, nas aulas de redação, o professor Sérgio lia em alto e bom tom, um ou dois textos que escolhia como os mais representativos de cada mês. Ser eleito por ele era a suprema glória no colegial.
E não tardou que ele me escolhesse. Justo eu, que tinha medo de fazer uso da palavra, que tinha vergonha de me sobressair, que tinha horror a ser chamado à lousa, que me aterrorizava com a simples possibilidade de aparecer. No dia em que o professor leu “O mundo em que vivemos”, que escrevi aos 15 anos, eu quis me esconder embaixo da mesa, cavar um buraco no chão, fugir para qualquer ilha perdida no atlas geográfico, mas não teve jeito. Ele havia gostado da minha redação e não poupou elogios, repetindo a dose em outros textos que elaborei nos meses seguintes. Devo a esse professor não apenas o incentivo constante ou as preciosas sugestões literárias que me nutriram vida afora, mas, acima de tudo, o aflorar da ternura e a educação dos sentimentos, lapidados por uma frase que me marcou demais (aqui não a direi, perdão), como se me apontasse uma estrada mágica a ser trilhada no futuro.
Mas não pude seguir o vaticínio do mestre. É que o meu destino já estava comprometido com o direito. Sabe como é, aquele negócio de casamento arranjado: a tradição familiar, o caminho já aberto, a expectativa de ingresso em carreira pública e de tranquilidade no futuro, essas coisas todas. Quando chegou a época do exame vestibular, não deu outra, lá estava eu colocando a cruzinha na opção de ciências jurídicas. E assim se fez… Nada me impediu de ler, entretanto, nos intervalos dos tratados penais, os romances que me foram recomendados pelo professor Sérgio em sala de aula, e nem de cometer aqueles versos ingênuos tão próprios da mocidade. A literatura continuaria pulsando, secreta ou não, dentro de mim. Até o interesse pelos animais e suas histórias pungentes vem desse tempo de semeadura. Mas uma coisa sempre me intrigou: por que o professor me dissuadia do direito?
Vim saber, bem depois, que José Sérgio Matta era um autêntico lobo das estepes. Havia saído do Paraná quando moço, sozinho como sempre foi, no firme propósito de ser advogado em São Paulo. Acreditava nas leis e na justiça. Para isso deixou sua cidadezinha longínqua, veio para a metrópole, estudou, estudou e estudou, até ingressar na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, a mais renomada do país. Não se sabe, todavia, porque cargas d´água ele abandonou o curso jurídico para seguir o que lhe batia no peito, as letras. Razões que o coração desconhece? Pouco importa, o fato é que se tornou professor de ensino secundário, na simplicidade rústica de quem jamais se importou com o poder, com as vaidades ou com as conquistas materiais. Iria apenas ensinar, sob o signo do sol, sob a inspiração da lua. E assim se passaram trinta anos de dedicado magistério, dias brancos e tardes de chuva, manhãs geladas e noites de brisa, três décadas plantando e cuidando e esperando pelas colheitas.
Ficaram em mim, disso tudo, as suas lições de vida. A arrebatadora descoberta da poesia romântica, o lirismo de Gonçalves Dias, a inquietação de Castro Alves, a fé de Alphonsus de Guimarães, a pérola bissexta de Alceu Wamosy, o humor britânico de Machado de Assis, a cadência de Jorge de Lima, as estrelas de Bilac, o olhar agreste de Graciliano, a nostalgia de Bandeira, os mistérios de Clarice, dentre outras maravilhas da mais bela literatura do mundo. Ah, antes que me esqueça, ao me despedir do colegial tive a audaciosa atitude (quem diria…) de reunir meus poemetos juvenis em um caderninho e dá-los de presente ao mestre, como meio de expressar gratidão e reconhecimento a quem tanto me ensinara. Confesso que nesse dia o homem se emocionou…