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Educação especista na TV: O leão Cecil na Globo News

4 de julho de 2016
Paula Brügger
6 min. de leitura
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Foto: Divulgação
Foto: Divulgação

Há quase um ano atrás postei um pequeno texto sobre o brutal assassinato de um leão considerado um ícone no Zimbábue. Seu nome era Cecil [1].
Sua triste história foi manchete mundo afora. A mídia fez uma cobertura de grande magnitude sobre o caso, oferecendo relatos que versavam tanto sobre sua vida quanto sobre a onda de manifestações e protestos desencadeada pela sua morte.
A importância de Cecil – para a mídia e para o parque nacional no qual ele vivia – ia evidentemente muito além do seu valor intrínseco. Na qualidade de “atração turística” era também gerador de diversas formas de retorno financeiro. Ele não era como outros meros “leões enlatados” que, embora igualmente sencientes e autoconscientes, são mortos quotidianamente sem que a mídia faça estardalhaço algum sobre o tema.
Para um abolicionista, a vida de Cecil não era mais preciosa do que a de nenhum leão “sem estirpe” ou qualquer outro animal como um porco, vaca, ou galinha, que suportam seu calvário anonimamente. O que o assassinato dele e de outros animais faz emergir é a escória que jaz na essência da espécie humana.
Cabe então a pergunta: de onde vem tanta violência, insensibilidade e ignorância? A resposta está na herança cultural de nossa sociedade. E tal herança é perpetuada justamente pela educação tradicional.
Educação especista no programa Sem Fronteiras: um tributo a Cecil
Minha trajetória profissional está, desde o início, ligada à Educação: primeiro à chamada educação ambiental e, de cerca de uma década para cá, à educação abolicionista animal.
Quando dizemos que a educação pode ser “abolicionista” ou “ambiental”, estamos afirmando que a educação tradicional é especista e ecologicamente promotora de desastres ambientais.
Isso é preocupante porque acredito que a educação – seja formal ou informal – é a mais poderosa via de transformação de uma cultura e de uma sociedade na medida em que somente dentro desse universo de ação, pautado pela liberdade como consciência da necessidade, as mudanças profundas e duradouras têm lugar.
Infelizmente, iniciativas educacionais fundadas em valores contra-hegemônicos são pontuais. São “ilhas” de outra racionalidade nesse imenso ideário dominado pelo especismo e pela banalização da violência, entre muitas outras questões. A educação sempre terá um adjetivo implícito qualquer porque, via currículo oculto, haverá sempre e inevitavelmente um conjunto de valores inextricavelmente ligado ao processo de ensino aprendizagem. Nada é meramente técnico. Nada é meramente “informativo” [2]. O “pré-conceito” especista na educação, por exemplo, é apenas um reflexo da visão de mundo dominante em nossa sociedade. E no caso da educação informal isso é ainda mais contundente.
Um exemplo emblemático nesse sentido foi a matéria intitulada Caçada a leão no Zimbábue comove o mundo, veiculado na Globo News, no dia 06/08/2015. Quando vi a chamada para essa edição específica do programa Sem Fronteiras imaginei que assistiria a uma matéria que levasse em conta, ainda que minimamente, os interesses de Cecil e de outros animais. Entretanto, o que vi foi uma malfadada série de afirmações, imagens, cortes de edição e até erros de tradução que silenciaram qualquer possibilidade de leitura antiespecista por parte do telespectador.
Resolvi, então, fazer uma análise de conteúdo do programa que resultou no artigo “EDUCAÇÃO E TELEVISÃO: O LEÃO CECIL NO PROGRAMA SEM FRONTEIRAS, GLOBO NEWS”, publicado na Revista Brasileira de Direito Animal [3].
Como o artigo é muito longo transcrevo abaixo apenas o resumo:
Neste artigo, postula-se a ausência de imparcialidade nos meios de comunicação, bem como a sua importância na formação de valores no sentido lato. Nesse contexto, elegeu-se como objeto de análise de conteúdo uma edição de um programa do canal de televisão Globo News, intitulada Caçada a leão no Zimbábue comove o mundo. O estudo revelou elementos que foram silenciados ou apareceram de forma incipiente no programa, como a crueldade e a violência subjacentes à caça, assim como o viés moral que lhe é inerente. A matéria também destinou muito tempo à biodiversidade, tema digressivo no contexto em pauta, e tratou a caça quase que exclusivamente sob suas dimensões técnicas e legais. Tais questões mostram a necessidade de mudanças na formação de profissionais dessa área, uma vez que este estudo apontou a presença de valores especistas, algo que não condiz com o ideal de isenção de valores propugnado pela maioria dos discursos sobre o conteúdo das matérias jornalísticas.

Finalizo citando um trecho inicial do artigo mencionado acima:
[Karl] Popper argumenta que todas as pessoas que viessem a fazer televisão deveriam, volens nolens, tomar consciência de que têm um papel de educadores pelo simples fato de a televisão ser vista por crianças e adolescentes: quem trabalha em televisão participa de um processo de educação de alcance gigantesco. No entanto, o autor destaca que, ao abordar essa questão com profissionais da área, percebeu que tal ideia era uma grande novidade para eles.
Popper chega a propor um código de ética e ao mesmo tempo um mecanismo de controle, por parte do Estado, sobre a atuação dos profissionais que atuam na televisão.[…] Ele enfatiza que a civilização consiste essencialmente na redução da violência; é essa a sua função principal e também o objetivo que visamos quando tentamos elevar o nível de civismo na nossa sociedade. O autor destaca, ainda, que o conteúdo dos cursos de formação deve ser orientado para o papel fundamental da educação – para as suas dificuldades – e para a questão de esta não consistir apenas em ensinar os fatos, mas, sobretudo, em mostrar como é importante a eliminação da violência.
Na mesma linha de argumentação, [Pierre] Bourdieu  destaca que a televisão exerce uma forma particularmente perniciosa de violência simbólica: a cumplicidade tácita (e a inconsciência) dos que a sofrem e dos que a exercem.
Eis aqui, sobretudo na citação de Bourdieu, a origem e a perpetuação da violência, insensibilidade e ignorância mencionadas antes.
Nota:
[1]: https://www.anda.jor.br/03/08/2015/cecil
[2]: Brügger, Paula. Educação ou adestramento ambiental ? 3ªed. Chapecó: Argos; Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2004.
[3]: O artigo encontra-se disponível em: http://www.portalseer.ufba.br/index.php/RBDA/article/view/16504; Education and TV: Cecil the lion in the series Sem Fronteiras, Globo News. Abstract: This article postulates the lack of impartiality in the media, and its importance in the formation of values. The object of analysis is an edition of the television program Globo News,   entitled Caçada a leão no Zimbábue comove o mundo  [Lion Hunt in Zimbabwe, stirs the world]. The study revealed elements that were silenced, or appear in an incipient manner in the program, such as the cruelty and violence subjacent to the hunt and the moral bias inherent to it. The program dedicated substantial time to biodiversity, which was a digression in that context, and treated hunting nearly exclusively from its technical and legal dimensions. These questions point to the need for changes in the education of media professionals.

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