“A carne da tartaruga era a melhor, quase como a carne de boi, escura, dava para fazer o que quisesse. A gente comia os ovos também, estava junto, então comia. Sem maldade, né? Era sem maldade”.
O depoimento acima é de Ivan Soares dos Santos, 80 anos, um dos moradores mais antigos e conhecido pescador da Vila de Regência, também conhecida como Regência Augusta, localizada na foz do Rio Doce, em Linhares, no Norte do Espírito Santo, com pouco cerca de 1.500 habitantes.
Por muitos anos, os nativos da região como, seu Ivan, faziam a ‘carebada’, atividade de caça de tartaruga e coleta de ovos na praia. A expressão vem da palavra de origem indígena ‘careba’, utilizada para denominar as tartarugas-marinhas, desde o século XIX.
“Aqui não tinha outro jeito não, não tinha. Para manter sua família tinha que ser na pescaria. O nosso peixe aqui antigamente era só robalo. Mas, se não pegava nada, e via a tartaruga, como é que ia fazer? Era o recurso que tinha”- Ivan Soares dos Santos, pescador aposentado
Na década de 1980, entretanto, com o começo das iniciativas de conservação ambiental, o surgimento de leis que proibiram a pesca e frearam o aumento do valor comercial das tartarugas e a criação da Reserva Biológica de Comboios – que impôs restrições à exploração de recursos naturais -, os antigos caçadores, ou ‘carebeiros’, foram procurados pelos pesquisadores e ganharam novo papel: o de protetores.
“Agora não. Agora todo mundo a respeita. É lei, não pode, não pode mesmo. Se vir uma tartaruga tem que ligar e avisar. Eu vi com os meus olhos duas realidades. Trabalhei no Tamar por quase dez anos, com os pesquisadores. Agora, vejo os novos, meu filho, meu sobrinho… […] Quem comeu, comeu. Agora não come mais”, disse Ivan.
José Maciel dos Santos, 56 anos, conhecido como Cação, é sobrinho do Ivan, funcionário público federal, servidor da Reserva de Comboios, e ilustra bem essa transição entre gerações.
Quando jovem, chegou a comer tartarugas, o que não voltou a se repetir há mais de duas décadas.
“Fazia parte da alimentação da vila, uma vila humilde. Meu pai saia para a praia, para pegar a careba, quando encontrava pegava e também os ovos, e trazia para casa. Mas depois ele virou protetor, mudou. […] São os dois lados da moeda, você era um predador e agora vira um protetor. Pra mim, como pessoa, como humano, o que isso significa? Significa muito, eu aprendi muito, estou contribuindo com a preservação da espécie, desde 1986 e até agora, é muito gratificante”, relatou Cação.
Apesar da carência, os dois afirmaram que nunca pegaram uma tartaruga-de-couro para comer, pela raridade e até pelo susto quando aparecia na água ou faixa de areia.
Apesar dos esforços, os pesquisadores perceberam que apenas a educação ambiental não seria suficiente para a mudança de comportamento de toda a comunidade. Foi necessário criar alternativas de trabalho e renda para a comunidade.
A família do Ivan exemplifica bem o que houve, os nativos foram agregados, contribuíram com os valores culturais e tradições e viraram parte das iniciativas de conservação.
“Houve a mudança da realidade local, uma vila pequena, de pescadores, população indígena que foi transformada em um destino turístico. Foi um trabalho de anos. Muita gente vem de fora, mas quando vem, respeita as regras de proteção desses animais. O Brasil exporta essa experiência da relação ciência e sociedade para conservar as tartarugas marinhas para o mundo”, falou Joca Thome, o oceanógrafo e Coordenador do Centro Tamar-ICMBio.
Além da contratação dos pescadores, uma fábrica de roupas foi criada, em 1990, pensando também nas mulheres esposas ou chefes de família. Desde então, a confecção cuida de todas as etapas de produção, desde a concepção da coleção, ao corte, estamparia e venda.
“A importância da fábrica em Regência é promover o envolvimento comunitário, a geração de emprego e renda. Atendemos a itens diversos de vestuário, camisas, camisetas, vestidos, bolsas e sacolas retornáveis. A produção média mensal é de 5500 peças”, pontuou o administrador da fábrica, Élio Luiz Alcântara, que trabalha na unidade há mais de 20 anos.
Turistas querem ‘vestir a camisa’ da conservação, passaram a poder fazer isso literalmente. Atualmente, a unidade envia mercadoria para 10 lojas da Fundação Projeto Tamar no Brasil.
Bem-sucedida, a experiência pioneira inspirou a criação, em 1996, de uma segunda fábrica em Pirambu, Sergipe, que passou a ser responsável por itens como bonés, bolsas e pelúcias.
As confecções empregam cerca de 70 pessoas, 29 em Regência.
Vila do surf
Uma Reserva Biológica (REBio) é um território protegido que tem como objetivo a preservação da vida e dos atributos naturais de uma região. Normalmente, a visitação é proibida, exceto para fins educacionais. Até pesquisa científica requer autorização prévia do órgão administrador.
E como conciliar as regras previstas para a criação da reserva com outra atividade que também se mistura com a história do povoado de Regência? A vila é nacionalmente conhecida por abrigar um mar de grandes ondas e ser destino de surfistas.
“As reservas biológicas são uma das categorias mais restritivas que existem entre as unidades de conservação. Mas, o que ocorre é que o mar não faz parte da reserva, ele está, na verdade, na sua zona de amortecimento. E a prática do surf acontece aqui desde antes da criação da unidade. É uma condição única que a gente tem aqui”
— Antônio de Pádua, biólogo e chefe da Reserva Biológica de Comboios
Diante desse encontro, a relação dos atletas com as tartarugas foi monitorada ao longo de anos, para que se chegasse ao veredito.
Atualmente, a prática de surf é autorizada e formalizada, mesmo em frente à área da reserva. O entendimento é que a relação é harmoniosa e contribui para o surgimento de novos protetores das tartarugas.
“A equipe técnica da unidade sempre defendeu a prática do surf como ferramenta de conservação. Conseguimos mostrar que, mesmo com a prática do surf, o número de ninhos e tartarugas aumentou dentro da reserva, não houve nenhum registro de interferência da atividade. Então quando a gente conseguiu formalizar o surf na área, a gente conseguiu ordenar, acompanhar, monitorar e dividir com os usuários a responsabilidade pela conservação das tartarugas e dos ambientes”, avaliou Pádua.
Impacto da lama de Mariana
É também na Vila de Regência que a lama do rompimento da barragem da Samarco, em Mariana, Minas Gerais, em novembro de 2015, atingiu o mar pela primeira vez, trazida pelo Rio Doce ao Oceano Atlântico.
Em um primeiro momento, foi impossível não sentir o impacto social provocado pela desestruturação de atividades básicas, como a pesca e o turismo do surf.
“O rompimento da barragem da Samarco em Mariana, causou um impacto gigantesco para Regência, não só um impacto ambiental, mas social muito grande. Nós tínhamos uma trajetória, uma história, numa região que vivia pela conservação da natureza, dos recursos naturais, com presença de comunidades tradicionais. E de repente, foi completamente abalada, com uma pluma de sedimentos de metais pesados. […] Quase não se consome pescado mais, ainda esperamos a melhoria das condições”, relatou Joca Thome.
Mais do que a água, os metais contaminam toda a biota, inclusive as tartarugas, que ainda apresentam altos níveis de metais pesados no sangue, nos ovos e inclusive nos filhotes.
“Sabemos que o sangue delas está contaminado com metais pesados, mas são animais de longa duração, então a gente vai poder observar o que acontecer ao longo do tempo. Diferente dos peixes que têm pouco tempo de vida, camarão, por exemplo, que vive três anos, então se contamina e daqui a ponto morre e recontamina o ambiente. Então é um processo de longo prazo que a gente vai ter que monitorar observar” — Joca Thome, oceanógrafo e Coordenador do Centro Tamar-ICMBio
Para Antônio de Pádua, o impacto do desastre não terminou.
“Recebemos aqui todo aquele rejeito no mar. Daqui, ainda se espalhou para Norte e para Sul, e a gente convive até hoje com a presença desse rejeito. Já são nove anos. Desde então vários estudos foram realizados, vários programas de monitoramento ainda estão sendo feitos. […] As principais espécies de pescado de importância econômica aqui para a região estão contaminadas. Isso gerou assim uma revolução nas relações sociais das comunidades aqui dentro da reserva. Isso traz impacto para a unidade também”, disse o biólogo.
De acordo com o biólogo, também houve prejuízo para o trabalho de conservação.
“A gente convive desde então com a expectativa de reparação. A própria unidade teve seus impactos diagnosticados, foi elaborado um plano de ação de reparação, mas ainda não foi implementado. Ainda aguardamos a implementação desse plano. E não existe uma previsão? Não existe. […] Enquanto isso, vida que segue. Continuamos aqui trabalhando com os recursos que a gente tem. A nossa estrutura física está muito aquém do que a gente gostaria de oferecer para a sociedade”, disse o chefe da Reserva de Comboios.
A vila, em sua simplicidade, seu estilo pacato, de um povo hospitaleiro e comida caseira, se reconstrói a cada dia, inspirada na força do seu herói mais conhecido, Caboclo Bernardo.
Acompanhamento das prefeituras e ações de reparação da Samarco
Tanto as prefeituras de Aracruz e Linhares e a Samarco foram procuradas para comentar se acompanham a presença de tartarugas marinhas no litoral do Espírito Santo e se atuam para auxiliar na proteção desses animais.
A Prefeitura de Aracruz foi procurada e informou que a única área com registro de desova de tartaruga-couro é o Território Indígena de Comboios, que tem dupla-afetação com a Rebio de Comboios, e tem monitoramento realizado pela equipe do Projeto Tamar.
Não existe uma fiscalização específica para pesca e consumo da tartaruga-de-couro, e não há evidências de que atualmente isso esteja ocorrendo. No caso de um fato eventual, este pode ser enquadrado no artigo 29 da Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/1998).
Em 2024, apenas uma tartaruga-de-couro foi encontrada morta no litoral da cidade. As demais são mais frequentes, até pela abundância. As causas são variadas, desde rede, resíduo plástico e contaminação da água.
A Prefeitura de Linhares não respondeu até a publicação desta reportagem.
A Samarco disse que no Espírito Santo existem dois contratos para o monitoramento da biodiversidade.
O primeiro é um acordo de cooperação técnico-científica com a Fundação Espírito Santense de Tecnologia (Fest), que atualmente totaliza R$ 696,5 milhões em contratos. Este acordo envolve uma rede de pesquisadores que gera uma ampla gama de resultados, fornecendo subsídios essenciais para o planejamento das ações de reparação da biodiversidade.
O segundo contrato é uma parceria com a Fundação Projeto Tamar, com um valor atual de R$ 18 milhões em contratos. Por meio da parceria com a Fundação Projeto Tamar, o monitoramento reprodutivo das tartarugas marinhas ocorre em uma faixa de cerca de 160km de praias, entre Guriri (São Mateus) e Comboios (Aracruz).
Ambos os acordos integram o Programa de Monitoramento da Biodiversidade Aquática (PMBA) no Espírito Santo, que alcançou os cinco anos de duração previstos. Nesses cinco anos de monitoramento executados pela Fundação Projeto Tamar não foi encontrada relação que possa evidenciar impacto negativo direto sobre essas populações com algo que tenha sido causado pelo rompimento da barragem de Fundão.
As informações geradas sobre as condições do rio são compartilhadas com os órgãos públicos que regulam e fiscalizam as águas do Brasil e também estão disponíveis no portal “Monitoramento Rio Doce – PMQQS”, por meio do site. Ao todo, são 80 pontos de monitoramento e 22 estações automáticas gerando informações em tempo real.
O acordo de reparação prevê o repasse para as instituições executoras do PMBA referente a 18 meses de execução, cujos valores devem ser depositados até maio de 2025. O Plano de Ação para a Reserva Biológica de Comboios, que já vinha sendo discutido, prevê conclusão de projeto para restauração de estruturas no centro de visitação da UC e repasse de recurso para que uma instituição a ser selecionada o execute.
Fonte: G1