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ESTUDO

É preciso quebrar tabus e preconceitos: a homoafetividade entre animais é uma realidade

14 de agosto de 2023
6 min. de leitura
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Foto: Anup Shah/Getty Images

O comportamento homossexual em animais já é algo documentado e bem relatado em laboratório, em cativeiro e principalmente na natureza. Um estudo, publicado no ano de 1999, mostrava que naquela época já haviam registrado mais de 1.500 espécies com comportamento homossexual, seja macho com macho ou fêmea com fêmea. Mamíferos, insetos, aves, répteis, anfíbios, todos esses grupos já tiveram registros estudados desse comportamento entre os animais.

O preconceito acerca desse tema na sociedade, além de atrasar os estudos, gerou compreensões equivocadas. Um dos primeiros relatos científicos de comportamento homessexual entre animais na natureza, ocorreu no ano de 1834, na Alemanha. Um cientista chamado August Kelch observou dois besouros-comuns (Melolontha hippocastani) machos em comportamento reprodutivo. Isso foi mal visto pelos cientistas que estudavam insetos na época, classificando a observação como ‘não natural’ e até mesmo como ‘horrível’. Citando o cientista que fez a observação: ‘Eu mal podia acreditar em meus olhos’, disse August ao ver a cena de dois besouros machos tendo relações sexuais.

Ao ver esse relato, as hipóteses dos cientistas começaram a surgir para tentar explicar esse comportamento, até então, ‘anormal’ dos besouros. De início, era falado que esse comportamento era explicado por que um dos besouros se confundia e achava que o outro animal era uma fêmea, ideia que não se sustentou.

Outra hipótese dizia que era uma forma de dominância que esse animal utilizava, para demonstrar força, outra ideia que hoje pelo menos, nesse caso dos besouros, também não se sustentou. Todas as explicações possíveis na época, tomavam um rumo de que esse comportamento era negativo, uma ‘exceção’, já que algo considerado tão repulsivo não poderia acontecer na natureza. Porém, ao decorrer do século XX, não paravam de surgir novos relatos desse comportamento na natureza, e em quase todos os grupos de animais existentes.

1/4 dos casais de pinguins era composto por dois machos

Em 1911, um explorador chamado George Levick, ao navegar pela Antártida, relatou o comportamento homessexual em pinguins-reis (Apenodytes patagonicus): “Parece não haver crime muito baixo para esses pinguins”, disse George ao ver dois pinguins-reis machos em em atividade sexual. De início, as explicações dadas para o comportamento dos pinguins também eram de erro de identificação, que o macho possivelmente confundia outro macho com uma fêmea, porém, os registros com essas espécies continuaram. Na década de 1930, mais registros da mesma espécie são publicados, confirmando o relato de George, feito anos antes.

Foto: Douglas da Cruz Mattos/Divulgação

A ideia de ‘erro’ de identificação perdurou por muito tempo, até que um estudo publicado em 2010 com essa mesma espécie de pinguim mostrou que 25% dos casais de pinguins-reis, em uma ilha, era formado por pares macho-macho. Um número bem alto para se considerar um ato isolado e ‘errado’. Outras possíveis explicações também foram dadas, como questões hormonais, por exemplo, mas pelo menos nesse caso, o erro de identificação era quase impossível.

É evidente que o preconceito acerca do tema na sociedade influenciou nas primeiras percepções e até mesmo nos estudos, buscando sempre dar explicações tendendo a relacionar esse comportamento dos animais como algo negativo. Hoje, existem tantos relatos bem documentados e estudados, que é impossível tratar como erro ou casualidade.

O golfinho-nariz-de-garrafa (Thursiops sp) apresenta uma das maiores taxas de comportamento homossexual registrados, inclusive relatos de femêas-fêmeas. Estudos com esses golfinhos demonstraram que ocorre contato genital durante o sexo entre os animais. Foi analisado que esses atos fortalecem as alianças entre pequenos grupos de machos dos golfinhos e fornece prática para encontros posteriores com o sexo oposto, ou seja, alguns golfinhos usam o sexo homossexual como “treinamento”.

A cobra-cadarço (Thamnophis sirtalis), serpente que ocorre na América do Norte, também foi registrada realizando sexo entre machos, porém com uma curiosidade: um dos machos imita fêmeas com feromônios e até em tamanho, para atrair o outro macho. A conclusão que os pesquisadores chegaram é que esses machos que imitam as fêmeas, buscam regular a sua temperatura corporal com outro macho, além de buscar proteção individual.

Além dos milhares de casos registrados na natureza, uma espécie de peixe chamada popularmente de barrigudinho (Poecilia reticulata), teve registro de comportamentos homessexuais em laboratório. Os peixes foram divididos em dois grupos: um grupo apenas com machos, outro grupo com machos e fêmeas. O grupo que só tinha machos, registrou mais eventos do que o grupo que havia a mistura de machos e fêmeas. Além disso, após um tempo, adicionaram fêmeas no grupo que só havia machos, e mesmo assim, os machos continuram cortejando apenas outros machos.

Nos últimos anos, foram publicados diversos estudos abordando esse tema com primatas. Esses animais são superinteressantes de serem estudados abordando essa temática, pois muitas das vezes possuem hierarquias sociais bem definidas e relações sociais super complexas. Pesquisadores da USP divulgaram uma pesquisa com dois machos de macacos-prego (Sapajus xanthosternos), um jovem e um adulto, que foram filmados durante 15 minutos tendo relações sexuais.

Nesse caso, foi visto o ritual de acasalamento completo da espécie, desde manipulação da genitália até cópula alternada entre os indivíduos. Assim como nos golfinhos-nariz-de-garrafa, possivelmente esses animais estão estreitando laços entre os indivíduos, e um deles é um jovem, ainda sexualmente imaturo, mostrando que ele possivelmente entra no quesito de ‘treinamento’ ao realizar esse ato.

Em chimpanzés bonobos, espécie viva com o parentesco mais próximo ao ser humano, o sexo faz parte da organização social dos animais. O sexo homossexual entre fêmeas nessa espécie inclusive é mais comum do que entre machos, sendo relatado diversas vezes em estudos, vídeos e fotos. O nível de detalhe é tão grande que é possível afirmar que no sexo entre as fêmeas, elas chegam a ter orgasmos, através de fricção genito-genital. Os machos quando se relacionam com outros machos, realizam massagens genitais e até mesmo sexo oral. A importância do sexo nessa espécie é muito grande, sendo responsável por aliviar tensão social entre os indivíduos do grupo e até mesmo reconciliamento de indivíduos.

Existe e é comum

São mais de 1.500 espécies registradas tendo esse tipo de comportamento: leões, cachorros, sapos, girafas, boto-cor-de-rosa, patos, gorilas, orangotangos, hienas, cobras, morcegos. A lista é imensa.

Se no século passado o preconceito tentou classificar a própria natureza como anormal, hoje sabemos que um pensamento desse é exclusivamente preconceituoso, ou apenas de negação cega da realidade.

O comportamento homossexual em animais além de ser comum, é importante. Segundo do dicionário, normal significa “de acordo com a norma, com a regra; comum. Que ocorre naturalmente ou de maneira habitual; natural, habitual”. Temos todas as evidências possíveis para afirmar que o comportamento sexual no mundo animal é normal, queira você ou não.

Foto: Ilustração | Freepik

Referências:

Bailey NW, Zuk M. Same-sex sexual behavior and evolution. Trends Ecol Evol. 2009 Aug;24(8):439-46. doi: 10.1016/j.tree.2009.03.014. Epub 2009 Jun 17. PMID: 19539396.

Fruth, B. and Hohmann, G. (2006) Social grease for females? Same-sex genital contacts in wild bonobos. In Homosexual Behaviour in Animals (Sommer, V. and Vasey, P.L., eds), pp. 294-315, Cambridge University Press

Mann, J. (2006) Establishing trust: socio-sexual behaviour and the development of male-male bonds among Indian Ocean bottlenose dolphins. In Homosexual Behaviour in Animals (Sommer, V. and Vasey, P.L., eds), pp. 107-130, Cambridge University Press

Shine, R. et al. (2003) Confusion within ?mating balls? of garter snakes: does misdirected courtship impose selection on male tactics? Anim. Behav 66, 1011-1017

Zuk, M. (2006) Family values in black and white. Nature 439, 917

In Defence of Animal Homosexuality Pieter R. Adriaens, Institute of Philosophy, KU Leuven, Kardinaal Mercierplein 2, B-3000 Leuven, Belgium

Fonte: ECOA UOL

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