“O sábio é coerente em tudo o que diz respeito à perfeição, o que justifica sua fama. Muda apenas quando mudam as causas e os méritos. No tocante à prudência, é feio variar. Alguns, a cada dia, nunca são os mesmos. Sua sorte muda diariamente, assim como sua vontade e seu discernimento. Ontem concederam; hoje negam. Difamam sua própria reputação, confundindo os outros.”
(Baltasar Gracián, em A Arte da Prudência)
É complicado ter que conviver com quem mantém uma posição parcial em relação aos animais, e acredita estar no ponto mais alto da razão e do bom senso. Nas relações profissionais, sempre aparece algum candidato a gênio ou inventor da pólvora, disposto a bombardear com perguntas ou argumentos todo aquele que tiver o azar de ser descoberto como adepto ao veganismo. ‘Tá, mas nem ovo? Nem peixe?’ e por aí vai, com aquela cara de ‘hmmmm, que estranho’.
O curioso é que se exige tolerância com a multiplicidade de ideias e posicionamentos que temos hoje – mas se a sua ideia espreme os testículos morais das pessoas, como o veganismo/antiespecismo, então todos já ficam na defensiva/agressiva. Claro que algumas respostas-chave já desmontam qualquer chato, que provavelmente, em algumas semanas, vai pedir alguma receita ‘com soja’, comentar que assistiu ‘aquele vídeo horrível na Internet’ ou ‘viu uma carroça passando com um cavalo que dava vontade de chorar’. Parece que o mais categórico é aquele que tenta firmar o pulso no diálogo, mas é traído pela própria insegurança. Ou dor nos testículos.
Pois dentro da causa animal, há os que relutam em tomar certas posições, provavelmente porque ainda seguem com seus remorsos presos às palmadas-na-bunda das recomendações familiares, sociais ou, mais recentemente, ideológico-partidárias. No ano passado, por ocasião da votação da proibição da circulação dos VTA em Porto Alegre – veículos de tração animal, que receberam prazo de 8 anos para extinção, muita gente envolvida na questão ‘animais’ e ‘liberdade’ até as vésperas ainda não tinha decidido sua posição.
Claro, é desagradável ser desagradável, e fica feio frente aos colegas intelectuais comedores de carne estar ‘contra’ os menos favorecidos socialmente – maior balela, já que o fim das carroças estava atrelado à inclusão social dos trabalhadores envolvidos, fim do trabalho infantil, qualificação das mulheres, organização da coleta seletiva. Coisa que não entra na cabeça de quem já tem discurso libertário decorado e camiseta serigrafada. E há quem ganhe com a manutenção da pobreza, nem que seja a justificativa para a existência, e da própria ideologia de combate às desigualdades. Longos papos nos cafés, com citação de autores estrangeiros etc.
Então, se exige-se que o colega da escrivaninha ao lado não seja chato nem contraditório nem hipócrita, como permite-se que um vegano tenha pruridos em condenar uma atividade onde um animal esquálido carrega peso o dia inteiro, à base de chicote, ‘comandado’ por um ferro encaixado na boca – sim, devidamente ajustado anatomicamente por um ortodontista veterinário, e com as demais condições que podem ser presenciadas in loco por aqui? Pois houve vários, que por razões as mais diversas, não perceberam que babaram seu especismo pelo cantinho da boca, enquanto discursavam. O resto do mundo animal deve ser livre, segundo tal e tal autor decretou – que eles leram no original, claro, exceto o cavalo da carroça.
A vaca deve ser livre. O cavalo deve puxar carroça a vida toda, e acabar no matadouro, se suas pernas não lhe reservarem uma morte no asfalto. O porco deve ser livre. O cavalo tem que puxar carroça dos ‘catadores libertários que não se submetem à burguesia’, e depois ir para o matadouro. A cochonilha, que dá a cor vermelha às bolachinhas e demais produtos industrializados, não pode ser criada e morta e triturada. O cavalo pode ser sublocado para os ‘catadores libertários que não se submetem à burguesia’, por outros carroceiros mais espertos, para então ir para o matadouro, depois de agonizantes anos trabalhando manhã, tarde, noite e madrugada, nas mãos de condutores diferentes.
Haja discurso anarquista e de autogestão para explicar esse capitalismo brutal das cavernas. Realmente o veganismo dá dor nos testículos, mas ainda não consegui decidir de quem, provavelmente do cavalo.