As cartas de intenção, promessas, acordos e recomendações resultantes da Conferência das Nações Unidas para o Oceano (UNOC3), recém-concluída na França, devem dar o tom dos debates na decisiva e controversa Conferência das Partes (COP-30) em Belém, dentro de alguns meses. Dentre os chamados elementos estruturantes para a Década do Oceano, a UNOC3 apontou para o papel preponderante do conhecimento científico. Fato é que a ciência vem avançando no passo das mudanças globais, inclusive antecipando seus efeitos. No entanto, o aquecimento e a acidificação da água têm sido mais velozes do que o financiamento e a vontade política que o Oceano merece.
Nesse sentido, trazemos aqui mais notícias preocupantes para os recifes brasileiros, já alterados pela contaminação do mar e pelas mudanças globais, especialmente o branqueamento, um processo que afeta as microalgas que vivem no interior das células dos corais quando a temperatura do mar se eleva e permanece alta por várias semanas. Trata-se de dois estudos recentes publicados na revista especializada Coral Reefs, desenvolvidos por pesquisadores dos Programas de Genética e Ecologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que vêm atuando em parceria com a Universidade Federal do Espírito Santo (FEST/UFES) e junto ao Programa de Pesquisas Ecológicas de Longa Duração (PELD/CNPq), nos recifes de Abrolhos.
Através do sequenciamento de DNA dos microorganismos associados aos corais, o chamado microbioma, identificamos, pela primeira vez no Atlântico Sul, a presença de Symbiodinium necroappetens, uma microalga do grupo dos dinoflagelados até então considerada restrita ao Caribe. O nome científico desse mais novo membro da biodiversidade brasileira causa arrepios e diz muito sobre o achado. Ao passo que “Symbiodinium” vem do grego e se refere ao “dinoflagelado que vive em simbiose”, o epíteto necroappetens combina a palavra grega nekrosis (“morte”) com appetere (“desejar”), do Latim, referindo-se a um simbionte “busca-morte”. Trata-se de uma microalga conhecida por colonizar tecidos de corais fragilizados por estresse térmico ou infecções microbianas.
Antes da anomalia térmica de 2019, a maior no registro histórico, a “busca-morte” era indetectável nas dezenas de amostras de Abrolhos que analisamos. No entanto, depois do evento de branqueamento daquele ano, ela chegou a representar mais de 70% dos simbiontes, pelo menos até 2023. A funesta microalga está presente em diversos hospedeiros, incluindo o coral-cérebro, Mussismilia braziliensis, endêmico da região e criticamente ameaçado.
Embora a biologia da “busca-morte” ainda seja pouco compreendida, essa microalga parece ser oportunista, assim como outras microalgas recém-identificadas em corais brasileiros, as quais parecem se beneficiar das condições adversas aos corais. Sua expansão, portanto, pode estar ligada ao aumento na frequência e intensidade das ondas de calor. O nosso estudo reforça a importância de um monitoramento contínuo e mais aprofundado dos recifes brasileiros, integrando também a biodiversidade microbiana. A detecção precoce de simbiontes como a “busca-morte” pode ser uma ferramenta crucial para embasar estratégias de conservação, alertando sobre a degradação antes que ela se torne irreversível.
O outro estudo revelou mais um aspecto preocupante da trajetória dos recifes brasileiros após a onda de calor de 2019. Seu próprio título, “Nowhere to hide”, ou “Sem esconderijo” em tradução livre, já indica que o Antropoceno parece não mais propiciar refúgios seguros para os corais. Em Abrolhos, embora a maior parte dos corais tenha recuperado sua cor castanha após o branqueamento, como previa a hipótese do refúgio climático dos recifes brasileiros, as colônias sofreram uma perda brutal de tecido vivo, chegando a mais de 70% no coral-cérebro e 50% no coral-casca-de-jaca, Montastraea cavernosa, duas das espécies mais abundantes da região. O mais alarmante é que essa mortalidade tardia não foi necessariamente precedida por branqueamento visível, o que evidencia uma lacuna importante nos métodos e protocolos tradicionalmente usados para monitorar os recifes brasileiros. Nesse sentido, novos protocolos de monitoramento recifal vêm sendo desenvolvidos e testados por nossa equipe, com ampla utilização de técnicas de visão computacional e inteligência artificial para processar dados que podem ser adquiridos por pessoal não-especializado, podendo substituir gradualmente os protocolos tradicionais menos efetivos.
Em um contexto de emergência climática, onde múltiplos estressores afetam simultaneamente os recifes, é urgente que novas abordagens de monitoramento, contínuas, adequadas e integradas, sejam implementadas e fomentadas pelo governo e instituições privadas que se propõe a ajudar a reverter a crise global dos recifes coralíneos. Incorporar dados genéticos e microbiológicos ao licenciamento ambiental, fortalecer a ciência nas unidades de conservação e implementar planos de adaptação climática baseados na natureza são medidas urgentes, especialmente em áreas de alta biodiversidade, como Abrolhos. A recuperação dos recifes exigirá um esforço global muito maior que ações paliativas. Sem mitigar as emissões de gases estufa e implementar intervenções baseadas em evidências científicas, perderemos o curto tempo que parece restar para os recifes, no Brasil e no mundo.
A persistência prolongada da microalga “busca-morte” nos tecidos dos corais e a perda de mais de metade do tecido vivo das principais espécies de coral de Abrolhos, nos últimos 5 anos, levantam sérias preocupações sobre a saúde dos recifes brasileiros. A pergunta que permanece é: quantos outros sinais estamos ignorando enquanto os recifes de corais continuam a enfrentar uma pressão imensa da industrialização e das mudanças climáticas?
Fonte: O Eco