O presente artigo surgiu na necessidade de se fazer um trabalho final em uma disciplina de Antropologia ministrada no curso de ciências sociais da Universidade Estadual de Campinas, onde a turma deveria se organizar em trios e realizar um exercício de observação e elaboração de relato etnográfico, com uso de autores debatidos no decorrer do semestre; a respeito de qualquer questão que envolvesse um local e um grupo de pessoas ligadas a um tema, na qual não se tinha necessidade de nada exótico, uma vez que o espaço mais simples e cotidiano pode render observações interessantes, se pensado em seus pormenores.
Por algumas semanas permaneci sem uma idéia plausível, até assistir ao filme Câmera Olho. Digo que nele uma cena me surpreendeu; ao mostrar todo o processo de “ganho” da carne numa câmera acelerada, de trás pra frente, a partir da cena onde uma mulher trocava umas moedas por um pedaço de carne até o momento em que a vaca aparecia viva. O processo em si, embora visto por intermédio de uma tela inúmeras vezes, ainda ter despertado o famigerado asco misturado com angústia, mais que isto, o movimento da câmera que revertia as ações ganhou minha atenção. Eis o tema do trabalho delimitado: tinha me proposto então, a realizar um exercício de observação (tal qual aquele que se faz antes de adentrar num trabalho de campo) nos açougues de Campinas. Lembro ter partilhado a idéia com alguns colegas, a fim de fechar um grupo que não fosse fechado à proposta; a princípio recorri aos vegetarianos da sala, mas acabei agregando duas colegas que acolheram à idéia com aquilo que chamam de “mente aberta”.
Partíamos da idéia de fazer, então, a observação de locais que reúnem as práticas da venda e compra de carne – tais como supermercados e açougues – e, a partir da relação de consumo entre animais humanos e não-humanos, pensar a questão da elipse da conexão entre animal e carne – o rito de passagem – na ótica antropológica.
Dessa forma, a proposta trouxe idéias como traçar a ponte humano-animal-carne e a significação cultural dos objetos nos locais observados, numa reflexão sobre o que permite/valida o consumo de animais para fins alimentícios. Conforme os estudos e os autores que discorrem sobre o conceito de cultura foram assumindo um caráter diferenciado que se adequaram ao presente exercício de observação, este tomou por referencial teórico Marshall Sahlins, e a tese de mestrado de Juliana Vegueiro Dias, O Rigor da Morte: a Construção Simbólica do “Animal de Açougue” na Produção Industrial Brasileira. Estávamos ali com excelentes fontes, às quais recomendo enfaticamente. Faço aqui um parêntese, para dizer que revisando o trabalho a fim de estruturá-lo como artigo, reverti – na parte que segue, da descrição física da disposição da venda de carnes – os verbos no presente para o passado, a fim de relatar as observações que foram feitas no final de 2009. Lamento dizer que estas não se tratam de práticas que se limitam ao passado.
Começava então com a referência a Sahlins, que, por exemplo, analisando a sociedade americana em relação às suas preferências de comida e quanto aos tabus que essa sociedade sustenta, coloca: “[…] o ponto principal não é somente de interesse do consumo; a relação produtiva da sociedade americana com seu próprio meio ambiente e com o mundo é estabelecida por avaliações específicas de comestibilidade e não-comestibilidade […][1]
A intenção aqui era a de lançar um olhar mais minucioso e atento sobre a peculiaridade do ato pelo qual animais humanos (vivos) consumem fragmentos de outros animais (mortos). Animais humanos: membros da espécie primata bípede, Homo sapiens. Outros animais: vacas, porcos, galinhas e peixes, sendo os dois primeiros mamíferos quadrúpedes, o terceiro bípede e o último, detentor de nadadeiras e brânquias. Todos são reunidos no reino Animalia. No entanto, nas últimas três semanas freqüentamos ambientes de consumo de itens cárneos, nos quais toda e qualquer referência à categoria animal parecia ser de fato, esquecida e posta de lado.
Nas observações feitas em campo, localizamos a “sessão de Carnes e aves” ocupando o canto esquerdo dos fundos do supermercado. O odor era anteriormente notado. Uma espécie de geladeira horizontal se encontrava no corredor, contendo músculos, articulações e órgãos tanto internos quanto externos de vacas, porcos e galinhas, eram dispostos em bandejas de isopor, revestidas por um plástico. A outra prateleira refrigerada era relativamente setorizada, distribuindo carnes vermelhas, brancas e miúdos, em trechos diferentes. Os corações de galinhas eram vendidos aos montes, em cima de uma poça de sangue, numa única embalagem.
Algumas carnes são embaladas num outro tipo de embalagem, à vácuo, de forma a evitar o escoamento do sangue, que encontramos em algumas bandejas. Ao lado das prateleiras, um rolo de embalagens plásticas ficava à disposição do cliente, caso este queira “reembalar” a embalagem. A noção de assepsia era forte, havia um certificado da vigilância sanitária ao lado do balcão, os funcionários de uniforme, touca e botas brancas.
Seguindo a diante, tínhamos um balcão onde os funcionários amolavam facas e davam pancadas surdas com a machadinha. Ali eram expostos fígados pendurados, perfurados por ganchos; outros músculos e tripas eram postos em bacias brancas, ao lado, a pele de porco também pendurada. O ambiente reunia vários elementos típicos da esfera estereotipada de construção da masculinidade na simbologia ocidental, das facas, do contanto direto com o sangue, do “sangue-frio”, enfim, de toda a chamada virilidade presente na categoria meat-eater / hunter[2].
Saindo da sessão de carnes e aves, logo se via, no lado oposto, uma vasta quantia de itens incrivelmente coloridos e mais atraentes que o normal. Frutas, verduras e legumes. No caminho, uma sessão nomeada “frios e embutidos”, onde mortadelas e presuntos eram pendurados no alto; nas prateleiras geladas, encontravam-se lingüiça, salsicha, azeitonas, maionese e comidas prontas. No mesmo ambiente, eram expostas carne-de-sol e bacon. Na frente dessa sessão, estava a de “Peixes”, curiosamente separada das “Carnes e aves”, como outra categoria de alimento. Ali, o mau-cheiro também é característico, as carnes de peixe pareciam ser mais congeladas que as outras, e se encontravam todas num fundo refrigerador[3].
Dos vestígios de alguma vida nos balcões assépticos, nas embalagens a
vácuo e no avental branco:
Pois parece, de fato, que toda a assepsia procura garantir ao consumidor que o objeto de consumo se mostre uma mercadoria comestível, sem qualquer outro destino prévio. A categoria que reúne os elementos que remetem ao animal enquanto ser outrora vivo é apagada do ambiente. A carne é consumida fora do contexto de tudo aquilo que indica a presença de um corpo, é retalhada em pedaços e formas neutras, quando não enlatada nos chamados embutidos. O sangue é evitado a todo custo, conforme aparecem as embalagens a vácuo e o cenário branco; a temperatura quente e viva da carne é revertida em itens refrigerados e congelados.
Os artefatos parecem circular, em grau máximo de afastamento do corpo e da vida dos animais. Na produção industrial se delineia, assim, a carne como um produto surgido ex nihilo – autônomo, independente, característico do “mundo das mercadorias” (DIAS: 2009, K.Marx, (1867) 1987). É possível perceber o consumo de carne enquanto algo possibilitado pela via da comodidade, seja pela disponibilidade no mercado, pela idéia de higienização do ambiente (da vigilância fiscal), ou mesmo pela simbologia envolvida na aparência do produto. Fatores que não deixam de ser comuns aos que influenciaram a transferência dos açougues comerciais para dentro dos supermercados.
Olhando mais atentamente às mercadorias acima descritas, percebíamos o sangue concentrado nas dobras da embalagem justa, as manchas de sangue no chão branco, o avental branco-amarelado e o mau-cheiro instalado a dois corredores de distância. Ainda, podia-se refletir sobre o mal-estar gerado em torno das semelhanças das partes do corpo animal (dispostas a venda) com o corpo humano dos próprios consumidores. Partes como língua, estômago, pé, entre outras, são algumas as quais a conexão perdida na elipse se dá mais espontaneamente, sendo elas menos procuradas e consumidas, consideradas “comidas exóticas” pelos próprios funcionários do açougue.
Pensando a trajetória que antecede a mercadoria nas prateleiras, podemos citar a linha de (des)montagem trabalhada por Dias, que caracteriza o abate industrial de animais e não apenas introduz a alienação do trabalho humano, mas, como seu próprio nome indica, ao fragmentar o corpo animal em partes – a partir de que o todo é irreconhecível e irrecuperável -, materializa a alienação neste próprio corpo. Ou seja, em analogia ao argumento de K.Marx [(1867) 1987] em relação ao trabalho humano, o corpo animal também se torna um “hieróglifo social”.
“Tais disposições são etapas fundamentais na transformação simbólica do animal em carne. Retirar todo o sangue do animal, esvaziar de vida o corpo que antes se movia por conta própria, proporciona um distanciamento da idéia do animal vivo, aproximando a matéria inerte de um objeto artificialmente produzido. Trata-se, assim, de um processo de descaracterização progressiva do animal durante sua transformação em carne, como notou N.Vialles (1987), através da retirada das patas, da cabeça, pele e vísceras.”[4]
Temos, novamente, a dissociação entre o animal e o produto industrial classificado na categoria carne. Nas argumentações de DIAS (2009): oculta a morte, imediatizado o consumo, neutralizada a corruptabilidade da carne, esta se mostra cada vez mais como um produto como outro qualquer, produzido pela mão humana, do que com um produto de primeira natureza. A partir do que foi observado, o consumidor tem toda a indiferença necessária para eliminar quaisquer conexões entre animais e “peças”.
“Paralelamente a esse movimento de especialização e fragmentação da produção, Gustavus Franklin Swift, dono da fábrica que leva seu nome, desenvolveu uma técnica que efetivamente revolucionou o mercado de carnes: a carcaça, cortada em inúmeros pedaços, era agora apresentada ao consumidor como peças de carne, o que permitiu significativa elevação dos preços: “a melhor forma de atingir esse objetivo era cortar a carne esteticamente em pedaços, da forma mais atraente possível e expô-los pelo menor preço (W.Cronon, 1991: 237).”[5]
Apontado pela autora, este é o passo decisivo para a cisão entre a carne, enquanto produto industrial, e o animal, em sua integridade de corpo vivo. É demonstrada a transformação do animal em mercadoria comestível através de uma elipse lógica que mascara a passagem do ser vivo ao corpo morto, que segue inúmeras estratégias, as quais velam a forma real do corpo animal, na desenvoltura de um “mercado de pedaços” que suprime completamente a relação entre o fragmento e a totalidade de seu corpo. Existe aí toda uma lógica de produção simbólica em torno da mercadoria:
“De fato, como argumentou W.Cronon, o resultado mais importante da produção industrial de carne – mais do que a carne em si – é o esquecimento, este que faz o animal morrer duas vezes: uma primeira vez nas plataformas de matança e uma segunda, no pensamento dos consumidores.”[6]
Tal como Marshall Sahlins constata, o consumo de carne só poderia dar-se mediante à separação entre aquilo que se come e o que é determinado por uma interação comum entre homens e animais; Baudrillard coloca que da mesma maneira que a linguagem, o consumo é uma troca de significados onde a funcionalidade dos bens ocorre depois, se auto-ajustando.[7]
Bom, nesta conclusão apressada acabava o trabalho. Assim que impresso, foi apresentado em sala. Os demais colegas discorriam sobre seus temas, tais quais as visitas a espaços públicos frequentados por um determinado tipo de pessoas, às peculiares visitas a igrejas evangélicas neopentecostais, a lojas e shoppings, entre outros. Não pude deixar de notar expressões que iam do receio, à surpresa, ao nojo, ao quase-interesse e à aversão. Espero ter despertado um mínimo de incômodo naqueles que são agentes destas práticas, e com esse incômodo, um mínimo de reflexão, por que tudo aquilo que fazemos, por mais pessoal que pareça, não deixa de ser, sempre, um ato político; e como a antropologia estruturalista nos ensina, os atos são atos dotados de significação simbólica, e nada é mera funcionalidade.
Bibliografia
DIAS, Juliana Vergueiro. O Rigor da Morte: a construção Simbólica do “Animal de Açougue” na Produção Industrial Brasileira. Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de Antropologia Social do IFCH/UNICAMP, Fev. 2009
SAHLINS, Marshal. Cultura e Razão Prática. Rio de Janeiro. Zahar Editores S.A., 1979
Notas
[1] SAHLINS, Marshal. Cultura e Razão Prática. Rio de Janeiro. Zahar Editores S.A., 1979. P. 190
[2] Termos da literatura inglesa e norte-americana. O primeiro, procura designar a categoria aqueles que têm uma “cultura” da presença de carne reforçada na dieta onívora; o segundo, termo para caçador.
[3] As informações e impressões colhidas em campo, talvez pela escolha do ambiente deste, de certa forma, acabaram sendo bastante homogêneas nos dois supermercados, com alguma diferenciação nos açougues também visitados.
[4] DIAS, Juliana Vergueiro. O Rigor da Morte: a construção Simbólica do “Animal de Açougue” na Produção Industrial Brasileira. Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de Antropologia Social do IFCH/UNICAMP, Fev. 2009. p. 54
[5] DIAS: 2009, Op. Cit. p. 28
[6] Idem.
[7] SAHLINS: 1979, Op. Cit. p. 197
Giulia Bauab Levai,[email protected],Graduanda em ciências sociais, Universidade Estadual de Campinas.