“Era verdade. Durante uns dias o cão não falou. Digo bem: não falou. A fala é muito complicada. Está antes da palavra, como a poesia. E aquele cão falava. Falava com os seus vários modos de silêncio, falava com os olhos, falava, até, com o rabo, falava com o andar, com as inclinações de cabeça, com o levantar ou baixar as orelhas. Daquela vez calou-se por completo. Não falou com nenhum de seus sinais. Nem sequer com o seu silêncio”.
(Manuel Alegre)
Do que um cão não precisa? Essa pergunta pode suscitar discussão, algumas reflexões e um bocado de polêmica. A resposta nem sempre pode ser aquela que desejamos ouvir. O que estamos fazendo com eles no sentido de deformar suas mentes e corpos para adaptá-los à conveniência dos padrões humanos? Até que ponto o que é bom para o ser humano pode beneficiar o cão de alguma maneira? Por isso, mais do que refletir sobre o que um cão precisa, faz-se necessário lançar uma luz também sobre aquilo que um cão não precisa e que é imposto a ele pelos “descachorradores” que existem aos milhares.
Na verdade, eu estava escrevendo sobre o que um cão precisa para exercer sua identidade saudável e equilibrada de cão. Mas começaram a aparecer nesse contexto tantas coisas que ele não precisa para ser um cão, que resolvi dividir o texto. Portanto, oportunamente publicarei “do que um cão precisa”.
Seria necessário um grande esforço para pelo menos tentarmos imaginar o mundo sob a perspectiva canina. Como somos falhos nessa tarefa, além da intuição de uma vida de convivência com eles, recorro à leitura e à informação para tecer algumas considerações preliminares a respeito do que um cão NÃO precisa.
Antropomorfização:
Antes de entrar no mérito do que um cão não precisa, há que se considerar brevemente, dois aspectos da antropomorfização, já que o termo será mencionado algumas vezes. Segundo Moussaieff e McCarthy, a antropomorfização das emoções pode assumir a conotação de empatia quando considera que os animais humanos e não humanos podem senti-las. Em sua obra Quando os Elefantes Choram, os autores analisam emoções como medo, raiva, inveja, carinho, repulsa e etc. em animais não humanos. Seria, segundo os autores, uma espécie de antropomorfismo positivo reconhecer emoções até então consideradas humanas em animais não humanos. Os autores não levam em consideração os desencadeadores das emoções, que, por razões óbvias, variam segundo quem presencia e traduz os fenômenos apresentados entre os animais. Mas defendem que seres humanos e não humanos possuem a mesma gama de emoções.
Por outro lado, a antropomorfização pode assumir uma conotação de desrespeito quando há a imposição de hábitos e fenômenos exclusivamente humanos a animais não humanos. É a esse segundo tipo de antropomorfização que me refiro no presente texto.
Millan (2006, p. 146) afirma que
Quando os seres humanos adotam cães e os levam para seu ambiente e seu lar, na maioria das vezes procuram fazer tudo pensando no bem estar (grifo nosso) do animal. Tentamos dar ao cão o que achamos que ele precisa. O problema é que não pensamos no que os cães precisam, mas no que o ser humano precisa para viver. Ao humanizarmos o animal, nós o prejudicamos psicologicamente.
Quem trabalha com a temática animalista abolicionista ou quem tem empatia pelos animais não humanos, percebe que, na maioria das vezes, a antropomorfização imposta aos animais não humanos atinge o status de bizarrice.
Tais bizarrices constituem um triste cenário para os cães e para quem tem alguma empatia com eles. Falo da empatia de quem vê o cão como um cão, não como um humano de quatro patas. Os cães são os animais não humanos mais próximos do nosso convívio, portanto, os mais sujeitos a essa antropomorfização.
“Descachorrar” é o termo utilizado por Horowitz (2010) para definir algumas tentativas que o ser humano faz de impor seus hábitos aos cães. De tirar deles os hábitos e modos de viver que fazem dele um cão. Quanto mais parecidos com os humanos, “melhor’. Há muita “bizarrice” praticada contra os cães. Mas hoje me deterei apenas em algumas delas que trazem implícita ou explicitamente a intenção de “descachorrá-los”. E que, claro, movimentam uma indústria bilionária mundial: acessórios, motéis, festinhas de aniversário, ofurô e cheiros artificiais.
– ACESSÓRIOS: os acessórios que visam suprir uma necessidade ou prover um conforto maior para o cão são diferentes dos acessórios para satisfazer o ego do dono. Isso fica evidente quando nos deparamos com pessoas que se orgulham de ostentar em nome do seu cãozinho, por exemplo, uma jaqueta de 1.000 (mil)! reais comprada na rua mais cara e famosa de São Paulo . Ou uma coleira assinada por determinado artista plástico para seu “bebê”. Ou ainda uma coroa cravejada de diamantes para sua “princesa”. Não questiono aqui, o valor pago ou o status subjetivamente envolvido. Mas beira a insanidade quando os donos orgulhosos dizem que seu cão se sentirá “mais amado” com um acessório de grife. Unhas e pêlos pintados, tênis, jóias, escova progressiva em poodle, balas de menta, cílios postiços, bindis e gravatas aplicados com cola quente, engrossam esse coro de aberrações.
A palavra “agressão” possui uma pesada conotação, pois geralmente remete a castigos físicos, maus-tratos explícitos e etc. Já fui rotulada de “radical” pelos descachorradores ortodoxos quando disse (e continuo pensando e dizendo) que essas são agressões explícitas à dignidade do animal. A barreira que separa a necessidade do cão do exibicionismo do dono, para mim, é perfeitamente visível.
– MOTEL: a primeira vez que ouvi a expressão “motel para cachorros”, pensei que fosse algo como um ambiente aberto, natural, que favorecesse a também natural aproximação no cio, algo do gênero. Mas não me surpreendi ao constatar que se trata, sim, de um motel para cães. Só que nos moldes humanos. Esses “motéis para cães” possuem cama redonda e espelho no teto. Lençóis com muitos fios, luz de velas e música romântica. Não estou brincando. Na cidade onde trabalho, há uma agência especializada em viabilizar os encontros caninos nesse tipo de motel. Os “donos” marcam um encontro pela internet e papo vai, papo vem, combinam um encontro. Geralmente o acasalamento (dos cachorros) resulta mais tarde em lucro com venda e usurpação de filhotes. Quem não acredita, consulte também o “pai dos burros moderno”, o Google.
– FESTINHA DE ANIVERSÁRIO: são umas “raves” para os cachorros que acontecem na ocasião de seus aniversários. Geralmente em tendas ou em salões de festa alugados. Claro, ao som de música eletrônica. Música alta, luzes estroboscópicas, globo e gelo seco. Isso quando não tem banda ao vivo. Os “donos” curtem cada momento. Mas quanta agressão aos sentidos caninos… Já se sabe tanto sobre a sensibilidade auditiva canina e as pessoas continuam expondo e impondo a seus cães, agressões de tal natureza. De quebra, bolo e brigadeiro (o buffets é “especializado”). Fotógrafos, lembrancinhas personalizadas e para completar, chapeuzinhos humanos que, claro, não param na cabeça por causa das orelhas na hora do “parabéns pra você” de luz apagada. Os convidados caninos nem são amigos do aniversariante. Alguns, meros desconhecidos. E quando chegam não podem nem cumprimentar o aniversariante se cheirando, que são logo repreendidos. Mas os “donos” já se conhecem. E são um capítulo à parte. Seria cômico se não fosse trágico, vê-los segurar as patinhas de seus respectivos cães numa tentativa de fazê-los bater palmas na hora do “parabéns”. Penso que alguns acreditam que seu “bebê” é capaz de assoprar a velinha e a língua de sogra. Não tirei esses fatos da minha imaginação que não tem nada de fértil. Apenas relato o que já vi, ou, para minha infelicidade, presenciei.
– OFURÔ: Ok. Ofurô pode, sim, ser relaxante para o cão. Desde que ele entre na água voluntariamente e lá permaneça o quanto quiser. Um dos meus cachorros adora se jogar na água quando está quente. Outro tem pavor. Mas já vi muito cachorrinho sendo forçado ao “relaxante” banho de ofurô. Voa pétala de rosa e água com sais de banho pra tudo que é lado. Ganidos e esperneios ao som de Ênia.
– CHEIROS ARTIFICIAIS: deterei-me um pouquinho mais nesse quesito porque o olfato é o sentido mais agredido do cão, por ser seu mais sensível, elaborado e apurado mecanismo de leitura de mundo. O mundo do cão é, antes de tudo, um espectro de cheiros. Nós humanos, que somos obcecados e paradoxalmente “cegados” pelo sentido da visão, não costumamos dar atenção aos cheiros. Perto dos cães somos anósmicos (não sentimos cheiro). Nosso precário sentido olfativo nos faz pensar que estamos em um mundo inodoro. Só percebemos quando o cheiro é bom ou ruim. E os conceitos de bom ou ruim são essencialmente diferentes em cães e humanos. Segundo Horowitz (2010), os narizes humanos possuem seis milhões de sítios olfativos. O sistema olfativo do sheepdog, uns duzentos milhões. O do beagle, mais de trezentos milhões. Após aspirado, o ar, no sistema olfativo do cão, entra em contato com uma vasta e intrincada rede de tecidos e receptores nasais, muito mais complexa que a existente nos humanos. Essa diferença entre humanos e caninos no “simples” ato de cheirar é significativamente exponencial. As empresas, endossadas pela mídia e propaganda, defendem que o perfuminho e o talquinho são feitos “especialmente para seu cão”. Não vou discutir aqui, quais parâmetros e critérios utilizados para tal afirmação. Mas se tem cheiro, agride sim. Não interessa se é de “flores do campo” ou de “camomila da relva”. E se não tem cheiro, é para os olfatos humanos. O perfume, o talquinho e afins, verdadeiras obsessões dos pet shops, podem nos parecer muito agradáveis. Mas são uma agressão sem tamanho para o cão. Assim como vômito, bosta e urina podem ser para eles, coquetéis de sensações e informações, para nós, chegam a dar náusea. As substâncias químicas artificiais afetam negativamente seu sentido primeiro, anulando a capacidade do cão de ler o mundo com o focinho. Então, recém saído do banho, quando tem a chance, vai se esfregar na grama, na bosta, no barro. Ele faz isso para se secar, ou algumas vezes para esconder o próprio cheiro em situações em que age como predador (sapo e barata morta são ótimos). Mas também é uma tentativa de tirar o cheiro das substâncias químicas que o agridem, que o cegam para mundo. E é duramente recriminado. Assim como é recriminado quando toca a urina de outros cães com o focinho para sentir os ferormônios (a urina conduz todos os cheiros para fora do organismo junto a uma série de informações). O melhor perfume para um cachorro é o do tutor. Mas seu cheiro natural. Aquele que tentamos camuflar com desodorantes, pasta de dente, sabonetes e afins. Segundo Horowitz, o “sovaco” humano é uma das fontes mais fortes de odor produzido por qualquer animal. Para o cão, vivemos secretando cheiros. Recriminá-los quando vão cheirar a boca, os genitais e os sovacos da visitas é outro ponto de discussão. Dependendo do humano que visita sua casa, isso pode ser nada, pouco ou muito constrangedor. Por isso Horowitz sugere que deixemos pelo menos o cão cheirar as mãos ou a nuca (dos mais familiarizados) de quem chega a seu território, pois não fazê-lo é equivalente a colocar uma venda nos olhos de um humano para abrir a porta de casa para alguém.
Quando tocamos um objeto, deixamos nosso cheiro nele. Se for um objeto de uso freqüente, poroso como um chinelo, por exemplo, esse objeto é uma extensão do nosso corpo para essa criatura com focinho. Daí a obsessão por chinelos e outros.
Todos os cheiros fornecem aos cães, um retrato scanneado do mundo e trazem informações específicas e singulares sobre o que comemos, quem beijamos, por onde passamos, se pegamos outro cãozinho ou gato no colo e etc. Eles cheiram também as nossas emoções: raiva, medo, angústia. Não é preciso apelar à paranormalidade para saber que substâncias químicas das mais diversas são produzidas involuntariamente nas mais diversas situações e liberam odores captáveis pelos focinhos. O que cheira a limpeza para nossos narizes humanos, cheira para os cães a química artificial. As substâncias químicas utilizadas para a limpeza da casa, especialmente do nicho que o cão passa a maior parte do tempo merecem uma atenção mais criteriosa. Não estou sugerindo que passemos a viver no que nós humanos chamamos de sujeira. Mas que olhemos com mais carinho para os focinhos caninos.
Essas considerações dão apenas uma idéia da extensão da importância do sentido do olfato para os cães. E podem dar a extensão do quanto eles são agredidos. Qualquer interferência nessa recepção e decodificação distorcerá a leitura do mundo para o cão. Quem desejar uma leitura mais profunda sobre os sentidos dos cães, recomendo a leitura de Millan e Horowitz, ao final deste texto.
A lista de bizarrices vai longe. Mas paro por aqui e convido o leitor a contribuir com algumas, pois sempre nos surpreendemos em se tratando de alguns seres humanos.
Millan diz que o maior erro que cometemos em nossos relacionamentos com os cães (e entre homens e mulheres) é achar que pensamos da mesma maneira. A maioria das pessoas insiste em se relacionar com os cães desta forma porque a psicologia humana é a referência de base. Somos criados para acreditar que tudo nos pertence ou pode ser como quisermos. Mas por mais inteligentes que sejamos, nunca conseguiremos anular totalmente o instinto inerente à natureza de um cão. Algumas pessoas tentam. E percebemos claramente um cão lesado em sua identidade através da sua linguagem corporal ou pelos distúrbios comportamentais que apresentam. O autor alerta que humanizar um cão é hoje, a fonte de muitos problemas que geram um cão desequilibrado e insatisfeito, conduzindo a um comportamento problemático.
As breves considerações aqui apresentadas podem parecer óbvias para grande parte das pessoas que tem verdadeira empatia por todos os animais não humanos, entre eles, os cães. Mas basta um olhar em volta para percebermos todos os dias, repetidamente, esses e outros fenômenos que envolvem antropomorfização. Fenômenos que se traduzem para o dono em status, orgulho e uma ostentação fútil que chega a ser ridícula. E sempre quem paga, com sua saúde mental e a perda de sua identidade, é o cão.
Há que se fazer a distinção fundamental entre o que é bom para si e o que é bom para o cão. Além de satisfazer os egos humanos e por vezes, mentes vazias, talvez no fundo (ou não tão no fundo) esses poucos exemplos citados, sejam frustradas tentativas de compensar a falta de liberdade e a falta de tempo com eles. Como acontece com filhos mimados que, materialmente falando têm tudo o que querem e mais do que precisam. Menos carinho, atenção e limites.
Tenho consciência de que os fenômenos aqui descritos são total ou parcialmente passíveis de outras interpretações. Os argumentos aqui apresentados podem ser controversos para algumas pessoas. Portanto, sujeitos ao debate. Mas em minha concepção, respeitar o cão é, antes de tudo, atendê-lo em suas necessidades de cão. E tudo o que está fora disso e segue o sentido da antropomorfização, da exploração e do exibicionismo pode ser considerado algo que o cão não precisa para exercer sua identidade com corpo e mente saudáveis.
Referências:
– ALEGRE, Manuel. Cão como nós. Rio de Janeiro: Agir, 2007
– HOROWITZ, Alexandra. A cabeça do cachorro. Tradução: Lourdes Sette. Rio de Janeiro: Best Seller, 2010.
– MASSON, Jeffrey Moussaieff & MacCARTHY, Susan. Quando os elefantes choram: a vida emocional dos animais. São Paulo: Geração Editorial, 2001.
– MILLAN, Cesar & PELTIER, Melissa. O encantador de cães. Tradução: Carolina Coelho. Campinas : Verus, 2007.