Muitos animais se afastam para morrer. Chega um dia em que eles, doentes ou bem idosos, saem de cena para nunca mais voltar. E tudo o que restará, então, será a lembrança dos afetos na memória dos que ficam. Porque é assim a lei da vida em seu eterno ciclo. Mas como esquecer do nosso velho cão que se encolheu, de modo definitivo, no fundo do quintal? E daquele gato ferido que se perdeu para sempre nos telhados vizinhos? Como não presumir a anunciada despedida do bicho silvestre que se desgarra de seu grupo social? Pássaros que amanhecem desmanchados no asfalto, borboletas despetaladas sobre a grama do jardim, baleias encalhadas à beira-mar, tudo parece seguir um curso predeterminado. Acaso teriam os animais percepção da própria finitude? Será que o isolamento voluntário não significa um comportamento instintivo revelador? Confesso que nada sei sobre essas questões biológicas ou filosóficas, podendo apenas – quando muito – intuí-las. Há quem diga, também, que a morte de qualquer criatura senciente pode advir de estados mentais depressivos. Animal ou gente, pouco importa, a tristeza prolongada atinge todos sem distinções.
Muitas vezes sentimos a ausência daqueles que nos deixam – humanos ou não-humanos –, que de alguma forma fizeram parte do nosso viver. Gestos suspensos, alegrias perdidas, retratos silenciosos. Se existe um problema filosófico real, penso eu, ele diz respeito à irreversibilidade da morte, o não-ser. A simples condição animal, aliás, não nos permite fugir dessa sentença inexorável. Sendo assim, o ideal seria – com a devida vênia para uma licença poética – se nós vivêssemos o suficiente, com dignidade, sem nada que ceifasse prematuramente a aventura vital. Em termos humanos, se fosse comigo, 80 anos seriam mais do que suficientes, desde que vividos com autonomia física e mental. É sério, confesso que na hipótese de chegar a essa avançada idade, eu não desejaria mais nada. Já pensaram? Oito décadas atravessadas, a mesa posta, a cama arrumada, a missão cumprida, o que mais querer? Apenas deixar o corpo se desfazer na terra ou permitir que suas cinzas sejam lançadas em algum lugar significativo de outrora. Apesar disso, a idéia da morte sempre assusta.
Quando penso nesse assunto delicado vêem-me à mente cenas horríveis de animais condenados. Será que eles antevêem o próprio fim? O boi que se recusa a seguir pelo corredor do abate sabe o que lhe espera? Decerto, arrisco responder, porque os choques elétricos são desferidos justamente para evitar que o animal estanque ou recue diante do recinto macabro. E o nosso cãozinho ou gato doméstico, será que vivem apenas o presente? Penso que eles, mesmo que idosos, ainda se recordem de seus dias serelepes, em que corriam e pulavam incansáveis, tendo também expectativas futuras. A propósito do tema da consciência, há uma pungente história de Leonardo da Vinci sobre as pequeninas aves engaioladas que, presas pelo caçador, receberam a erva envenenada do bico da própria mãe, a qual preteriu vê-las mortas a deixá-las viver sem liberdade. A ave-mãe teve, assim, a percepção (ou seria instinto?) da morte como libertação para o sofrimento. Quão espantosos são os mistérios da vida, que se perdem, não raras vezes, no labirinto da nossa limitada compreensão. Se há quase duzentos anos a Indesejada já foi chamada de “Mal do Século”, levando consigo tantos e tantos poetas românticos, em época mais recente ela interrompeu a carreira de jovens músicos como Janis Joplin, Jimi Hendrix, Brian Jones, Jim Morrison e Kurt Cobain, que faleceram aos 27 anos.
A propósito do “estigma dos 27”, outro dia a cantora da mais bela voz surgida nos últimos tempos também mergulhou no desconhecido, vítima que foi de seus próprios descaminhos, da desilusão e do abandono. Poucos meses antes, vale lembrar, esta artista decidira doar seus gatos a um abrigo de animais em Londres e, por isso, foi criticada pela opinião pública. Refiro-me a Amy Winehouse, artista de raro talento, discípula legítima de Ella Fitzgerald, Billie Holiday, Sarah Vaughan, Dinah Washington e de outras imortais divas do jazz e da música soul. Amy tinha um pouco de todas elas e algo mais. Sua voz, inconfundivelmente rasgada e com um timbre peculiar, tornou-se única neste vasto mundo decadente. Fiel ao gênero da black-music, com raízes fincadas no jazz e no rhythm and blues, ela tinha uma banda pra lá de glamourosa. Com um jeito todo despojado, sem se curvar aos padrões estéticos da mídia perversa, Amy desempenhava com maestria em recintos fechados. Isso porque seu estilo musical era, sobretudo, intimista, em que a voz sobressaía em relação a qualquer outro aparato visual, fossem os cabelos anos 60, fossem os longos cílios, fossem as tatuagens rebeldes. Por isso é que suas apresentações nos teatros de Londres, em 2007, tornaram-se antológicas. Basta ouvir as belíssimas Wake up Alone e Love is a Losing Game, a clássica Lullaby of Birdland, a beatlemaníaca All my loving ou mesmo a versão acústica de Valerie, para confirmar isso que estou dizendo.
Envolvida, porém, pelo vício suicida, Amy Winehouse entrou em declínio, foi internada, perdeu o potencial de voz e a imprensa não a perdoou. Tablóides e programas televisivos lhe lançaram cruéis estereótipos, condenando-a à morte em vida. Amy até que tentou voltar, passando pelo Brasil agora em janeiro de 2011. Eu pude vê-la no Anhembi, perante uma multidão vociferante que se retirou, em parte, apenas porque ela optou por interpretar, com sofreguidão, suas canções mais tristes. O semblante da artista era de uma menina acuada, exatamente a mesma registrada em seu último show, em Belgrado, neste derradeiro ano. Na Sérvia, já não reagia. Não queria cantar, jogou o microfone longe, quase chorou. As imagens da artista perdida em meio aos acordes de Back to the black eram de pura desolação, trazendo em si um apelo invisível: socorro! Parece que ela se afastava de tudo e de todos, para morrer em silêncio. E quase ninguém ajudou Amy Winehouse, cujo fim anunciado se concretizou pouco tempo depois. No seu velório ouviu-se apenas uma canção – So Far Away, tocada por Carole King –, em despedida à jovem que deixou o mundo dos vivos para se transformar em mito. Um ano antes, ao decidir se separar dos gatos, Amy parecia estar antevendo o próprio destino (ou seria apenas instinto?).
Acho que divaguei demais, a noite se faz alta e a lua desaparece. É hora de dizer adeus…