Por João O. Salvador, biólogo da USP (Universidade de São Paulo)
Aos cidadãos, tão puros, que tanto discutem sobre o perigo que os animais causam à coletividade humana, que merecem meu respeito, mas meu protesto pela maneira especista que o fazem. Vocês não transmitem doenças e nem morrem por acidentes no trânsito por negligência, embriaguês; até parece sentirem o prazer de ver o rombo e o tombo de um calibre 38. O mundo seria muito melhor se vocês não competissem tanto, fossem tão ardilosos, levando uma vida estressante, arrogante e competitiva, que provoca o abandono, os maus-tratos, a dor física e psicológica nas crianças, nos idosos e aos animais.
Se um líder animal pudesse usar a tribuna, pelo menos nesta semana a eles dedicado, e discursar na linguagem dos homens, em rede nacional, em substituição ao horário político, contra as práticas antropocêntricas, deveria fazê-lo em defesa de seus semelhantes da seguinte maneira:
“Eu, como representante dos animais, venho a púbico para defender os meus semelhantes abandonados, maltratados por seres irresponsáveis, como cães e gatos e outros amigos, os expurgados de seu ambiente natural e traficados, assim como os domesticados, cavalos e muares, puxadores de carroças, açoitados, desidratados, anêmicos e fraquejados, muitas vezes dirigidos por inconsequentes, bêbados e drogados. Apelo para que seja abolida a exploração dos que se apresentam em circos, nos rodeios, vaquejadas e pega dos garrotes, somente para satisfazer a gana dos mercenários, organizadores, patrocinadores e artistas, sob o aval de um público ingênuo, que aplaude as torturas provocadas pelos botinudos e chapeludos, os preservadores do sadismo, da arcaica tradição, do lixo cultural.
Ilustres humanos, para informar em segredo de injustiça que sentimos, ao nos colocarem para os inocentes, os perigos que representamos, inventando maneiras absurdas para nos consumir, injustamente discriminados. Claro, somos assassinos por causa das pandemias que causamos, que enchem os hospitais públicos e particulares de moribundos. Somos viscerais, causamos disenteria, maculosa, toxoplasmose, raiva, gripes e tantas doenças venais e mortais, como querem justificar, mas, nossa beleza é de outra espécie, nossa inteligência é de outra estirpe no reino animal
Somos, sim, a mais pobre representação de suas ricas metáforas do inferno, expostos ao desprezo e ao escárnio dos modernos e demonizados. Na verdade, pelo que dizem, somos assassinos estúpidos, como em muitos de seus próprios exemplos cotidianos. Não há o que contestar. Somos bichos, não bicheiros. Nascemos pelados e ficamos peludos ou penados, desorganizados e assumimos tanto disparate que não perpetramos.
Não bastasse a nossa incapacidade de tornarmos resistentes às suas armas químicas de iscas envenenadas, armadilhas e carrocinhas, ainda somos obrigados a inspirar esse ar poluído das cidades, hostil, chumbado; saciar a sede com a água oleosa, saponificada, que corre nas guias das calçadas, nos rios e lagos. Há amigos nossos que se encontram nos biotérios e que nunca viram a luz do sol, nunca pisaram em chão firme, sob o pretexto que salvarão vidas humanas, através de práticas doloridas, sádicas, inócuas, ultrapassadas.
Aprendemos a colher o melhor do pior. Necessitamos viver de petiscos, catando aqui, catando ali, quando não há gente infeliz por perto para delatar os humildes que nos alimentam e nos protegem.
Nós somos indesejáveis para muitos, mas se pudéssemos viver livres, em paz, sossegados, jamais nos tornaríamos desagradáveis.
Vocês, agora evoluídos nos pós e das pedras das drogas, nas bebedeiras, no conflito interior, guerras e quedas de tantos muros, saibam que eles podem voltar a ser erguidos a qualquer momento. Ah! Mas vocês não terão nem lembrança dos transmissores imundos, achincalhados, com os quais se incomodam tanto, quando virem a trama armada pelos donos do mundo, na mira de todos, que poderão transformar o planeta em suplício, em trevas, acabando para sempre com as suas mirabolantes idéias.
Bom, tentamos nos tornar animais de sua mais cara estimação, mas somos diferentes; de viver na mais higiênica harmonia, mas somos indesejáveis. Tudo que lhes agrada é o bicho traiçoeiro, arteiro, o bicho-homem, porque o temem. Queremos amá-los e esperançosamente aguardamos que um dia sejamos bonitos, orgulhosos, que nos amem tanto quanto nós lhes amamos, mas que ainda não perceberam”.
Fonte: Gazeta de Piracicaba