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Direitos Animais e a Incoerência Moral

6 de abril de 2011
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O erro da ética, até o momento, tem sido a crença de que só se deva aplicá-la em relação aos homens.”- Albert Schweitzer

Já faz tempo que considero o critério „senciência‟ (capacidade de sentir dor e prazer) como sendo o mais coerente, de acordo com o conhecimento atual, para se estabelecer direitos básicos para um indivíduo. Neste caso, podemos considerar a maior parte das espécies animais como dotadas de tal capacidade.

Alguns argumentam que direitos só existem com deveres, e como animais não podem cumprir deveres, logo, não são sujeitos de direito. Porém, esse pensamento me parece muito limitador, sendo fruto de uma regra arbitrária e dogmática, que, para ser modificada, depende apenas da nossa boa vontade, em nome de uma moral mais coerente com a realidade.

Já argumentei com os defensores dessa ideia que, seres humanos com demência grave ou em estado de coma prolongado, ou mesmo bebês, não possuem a capacidade de cumprir deveres e, ainda assim, são sujeitos de direito. A resposta à minha argumentação é, normalmente, que tais seres dependem de pessoas que cumprem deveres por eles; seja o responsável, procurador, MP, etc. Então, logo surge a pergunta: E por que não criar leis que estabeleçam direitos básicos para não-humanos incapazes de cumprir deveres?

Uma criança órfã na tenra idade é incapaz de cumprir deveres e certamente tem direito de ser protegida pelo Estado. Neste caso é consenso que deveríamos protegê-la pelo simples fato de ser um sujeito capaz de sentir dor, prazer, alegria, angústia, etc. Sabemos quais são as sensações, desejáveis e indesejáveis, que a criança é capaz de experimentar, e assim agimos, para protegê-la, por certa empatia. Na prática, ninguém apelaria para o potencial dessa criança em cumprir deveres no futuro, entretanto, ao considerar animais não-humanos a problemática se torna convenientemente uma questão de direitos através do cumprimento de deveres.

Não protegemos seres humanos pelas suas capacidades intelectuais ou racionais, mas sim pelas capacidades sensitivas ligadas à dor, prazer e interação com o ambiente. Se sabemos que animais não-humanos possuem tais capacidades, porque não defender suas vontades básicas, sua integridade física, mental e nervosa? Por que não defender animais contra uma exploração e sofrimento que jamais imporíamos a um ser humano com capacidades cognitivas e nervosas semelhantes?

Aparentemente a questão se resume a uma inércia cultural, e como „cultura‟ não é uma palavra intrinsecamente positiva (conceito que engloba escravidão, opressão da mulher e sacrifícios humanos), neste caso ela está associada a uma incoerência moral; o especismo. Especismo é a atribuição de direitos diferentes para espécies diferentes através de um critério arbitrário. Podemos definir „racismo‟ mudando apenas duas palavras nesta última frase, e em minha opinião a semelhança das duas ideias vai além da simples definição.

Obviamente há uma diferença fisiológica muito mais visível entre espécies do que entre raças da mesma espécie (Não vejo problema algum em usar o termo „raça‟ para diferentes populações de Homo sapiens, assim como não vejo problema em usar o mesmo termo para diferentes populações de Canis lupus), porém, as diferenças fenotípicas entre indivíduos humanos, de forma alguma mudam o fato de as semelhanças serem suficientes para se estabelecer direitos iguais para todos. Não defendo direitos iguais para animais humanos e não-humanos, mas sim direitos proporcionais às capacidades fisiológicas de cada espécie, e esse é mais um motivo pelo qual direitos não devem existir necessariamente vinculados a deveres.

Os deveres humanos servem para organizar as sociedades e assim garantir direitos aos seus indivíduos (pelo menos, em tese). Animais não-humanos não necessitam de direitos que podemos considerar exclusivamente humanos como, educação; liberdade religiosa, política, econômica, etc. Da mesma forma, deveres sociais são inaplicáveis a eles, e isso de forma alguma torna uma sociedade insustentável. O direito básico de não ser explorado, torturado e morto, deve ser concedido ao animal pelo mesmo motivo que defendemos incapazes, e o apelo moral é óbvio. O direito é um conceito humano, que deve ser aplicado nas sociedades, porém, não exclusivamente aos humanos, já que não existe base moral lógica em traçar uma linha imaginária entre espécies. Este é um conceito taxonômico arbitrário que possui, apenas, a função de organizar relações filogenéticas; não éticas.

Não temos um conhecimento completo dos diferentes níveis de senciência em todos os animais, mas sabemos que essa capacidade sensitiva é compartilhada pela maior parte deles. Um ser humano sem possibilidade de sair de um estado de afasia ou demência grave pode estar numa posição de consciência inferior a de um chimpanzé, ou mesmo de um labrador; entretanto sua integridade física é naturalmente preservada com muito mais entusiasmo. Vale salientar que não estou questionando a atitude de proteção aos incapazes humanos, mas sim a “esquizofrenia moral” de toda a situação1. Não há justificativa racional para se defender tal ponto de vista, que a meu ver, se baseia apenas em afinidade com a própria espécie. Especismo, racismo ou sexismo, são idéias baseadas em diferentes níveis de afinidade pessoal, usadas para sobrepor aspectos irrelevantes aos que são realmente importantes em determinada situação. Ideologias exploratórias normalmente apresentam estas características.

Os sintomas do especismo são notados de forma generalizada em quase toda sociedade, seja na forma de venda de animais domésticos, de gaiolas, de matadouros, ou em qualquer situação onde animais não-humanos desempenham a função de propriedade, sendo que estes têm suas capacidades nervosas ignoradas em nome de uma filosofia opressora. Durante a história da humanidade apenas a escravidão de um animal foi abolida no papel e, enquanto a humanidade se vangloria de uma obrigação, milhões de indivíduos são explorados, torturados e mortos a cada minuto.

Se „direito‟ é um conceito criado pelo ser humano, isso não implica em favorecer apenas o ser humano a qualquer custo; o argumento antropocêntrico do direito não resiste a um apelo moral lógico. De forma alguma sugiro uma imposição de morais humanas para a natureza, já que essa evoluiu de forma predominantemente amoral (comportamentos „morais‟ são bem documentados em alguns primatas) e independe da nossa interferência para manter o seu equilíbrio. As morais humanas devem servir para organizar sociedades e beneficiar indivíduos da forma mais ampla possível. Se, de acordo com o critério „senciência‟, animais não-humanos podem ser considerados indivíduos dotados de vontades e capacidades nervosas, e se estes, por algum motivo, se encontram no círculo social humano (a meu ver isto é algo indesejável, já que nosso sistema social é mal adaptado para tais indivíduos), não vejo razão alguma para negar direitos básicos para os mesmos.

Creio que, no momento, uma educação não-especista seria mais eficiente do que leis, uma vez que a exploração e morte de animais em massa só existem por consequência de uma demanda diária vinda de cada cidadão. Estes acabam fechando o ciclo do sofrimento ao ensinar para uma criança que animais existem para nos servir. Ensinam, então, a esses seres humanos sem discernimento, a não se sensibilizar com o sofrimento alheio, ou até mesmo os privam de conhecer a verdade acerca do que consomem, de forma que, quando se tornam adultos, não se incomodam por estar imersos numa cultura especista. Serão adultos que não enxergam incoerência alguma em tratar cães de estimação como membros da família, e vacas e porcos como máquinas ou escravos.

Uma vida com um mínimo de apoio à exploração animal é o caminho individual mais direto para uma mudança visível, já que a perpetuação da crueldade é, em sua maior parte, baseada na demanda do consumidor. Várias pessoas se abstêm de produtos que se originam, necessariamente, da crueldade e exploração de seres sencientes, e vivem muito bem com essa opção. Porém, um estilo de vida completamente livre de apóio ao sofrimento animal é algo mais difícil em curto prazo, tendo em vista nossa ignorância quanto a todos os processos de produção dos alimentos que consumimos diariamente.

De qualquer forma, práticas que se sustentam através da indústria e exploração animal, são facilmente descartáveis. Vivemos uma era em que, cada vez mais, as responsabilidades éticas globais recaem sobre decisões individuais, e uma dessas responsabilidades é a urgência em alargar o alcance dos nossos conceitos morais.

Notas:

1 O termo “esquizofrenia moral” tem sido popularizado pelo professor Gary L. Francione.

Pedro Heringer Lisboa Teixeira

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