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Dias preciosos

11 de fevereiro de 2011
4 min. de leitura
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Dias para não esquecer jamais. Longe, bem longe, ecos de uma época em que não existia o sofrimento… Olhava-se a natureza com a espontaneidade das coisas simples.  Sem tantas perguntas. A flor era a flor, a pedra era a pedra, o vento era o vento e o mundo era a estrada de chão com nossos pés deslumbrados sobre ela.   Laranjais a perder de vista, as mangas maduras da estação e os maracujás acesos no telhado de folhas verdes. Havia o córrego dos girinos, os cães sem dono se coçando nas praças e a longa preguiça felina em meio à tarde sonolenta. Havia também, ao findar do dia, a algazarra dos pássaros rumo ao sono das árvores. Não me esqueci disso tudo e nem do gosto açucarado da erva-doce roubada da horta.  Não me esqueci daquelas canções do Roberto que vinham de dentro dos bares ou de alguma janela distraída.  Nem da cidadezinha com sua gente simples, que compartilhava o espaço urbano com animais domésticos e fuscas coloridos. De nada disso me esqueci.

Eram dias felizes aqueles. Sem luxo, sem ambições, sem medo, sem tantos crimes e nem tragédias anunciadas.   Dias em que a rotina era apenas a de acordar e de correr e de brincar e de se encantar.  Ver sem compreender. Amar sem desejar. Comer sem nada saber. Tempo de vaquinhas bucólicas e galinhas no terreiro, ah, de nada eu sabia. Ainda não existiam fazendas de criação industrial, nem garrafas pet, nem caixa 24 horas, nem direção hidráulica, nem telefone celular, nem e-mail (meu deus, como era possível alguém ser feliz sem internet?). Naqueles tempos de delicadeza também não havia mentira e nem maldade.  Nosso mundo acabava logo ali no fim da rua. Sim, meu caro Chico, porque para lá desse quintal era uma noite que não tem mais fim…

No dia em que eu fui mais feliz tocou no rádio uma música, bonita e melancólica, chamada How Can You Mend a Broken Heart. Vim descobrir, anos mais tarde, que se tratava de um clássico dos Bee Gees, regravado em versão soul por Al Green. Ainda hoje, quando ouço essa melodia trazida pelas mãos de um mago pós-moderno chamado Youtube (basta escrever Al Green e depois clicar no quadrinho azul que ela aparecerá), é como se tudo retornasse: I can think of younger days when living for my life/ Was everthing a man could want to do/ I could never see tomorrow, but I was never told about the sorrow. Mas no fundo, bem o sei, aquele canto era de despedida, um irremediável adeus, a infância que se esvaía ao som de seu refrão: “Como você pode consertar um coração partido?”.

Muitos outros dias vieram e eu aprendi, pouco a pouco, a conhecer o mundo… Ver se tornou compreender. Amar virou sonhar. Saber agora era entristecer.  Assim, eu passei a ouvir o estalar das chibatas, os ganidos esganiçados pelo nó dos laçadores, o zumbido pavoroso das espingardinhas de chumbo, o lamento alado que vinha das gaiolas. Surgiram em minha vida, então, os jornais, as notícias de TV, códigos e leis, os clássicos da literatura e, talvez, uma forma diferente de sentir e de se compadecer com o olhar aflito das vítimas que já não eram invisíveis. E não consegui mais deixar de pensar. Acho que o Amarante tem toda razão em sua letra: Não te dizer o que eu penso já é pensar em dizer. Por isso é que agora eu digo.

E uma outra vez eu fui feliz, estávamos na primavera.  A tarde se dissolvia pela areia e, de repente, não mais que de repente, o horizonte azul trouxe nas mãos seu grande véu noturno. Já não sei se era dia ou se era noite.  Só sei que uma lua solene se ergueu, surgida não se sabe de onde, e a praia se fez plena em encantamento.  A noite caiu. O dia adormeceu.  Dia e noite, noite e dia, já não sei dizer. O mar selvagem então se tornou ainda mais azul.  Minha natureza libertária apontava para os infinitos astros. Na noite em que eu fui mais feliz o tempo subverteu, paralisado em si, grande, inexplicável e belo. Então, como no verso de Bandeira, os céus se misturaram com a terra e o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.

Desses dias preciosos que eu guardo na memória ficaram muitas lembranças boas e a certeza de que a vida nada mais é do que um misterioso pulsar, uma dádiva secreta, essa breve e frágil alegria, diante do espelho impiedoso que nos interroga a cada manhã.  Quantas vezes eu ainda me surpreendo, distraído, tentando resgatar aquilo que se cumpriu.  Tudo em vão… Culpa do Al Green e dessa perversa noite cravejada de estrelas.  E lá vou eu de novo me perder no abismo que é pensar e sentir. Melhor parar por aqui.

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