Ensaboar a louça toda e enxaguá-la de uma só vez, tomar banhos mais rápidos, fechar a torneira enquanto escova os dentes e jamais deixá-la pingando. Esses são ensinamentos que se aprende em casa desde criança, ainda que no meio daquela bronca em que os pais perguntam se o filho virou sócio da companhia de água, além da de energia elétrica.
Na prática, porém, o esforço para economizar água ainda é limitado nos lares brasileiros, onde a conta de luz pesa mais no orçamento. Ainda que racionalizar o uso da água também faça diferença no bolso, incorporar isso ao cotidiano ajuda a garantir o abastecimento de um item vital que começa a se tornar escasso mesmo no Brasil, que tem uma das maiores reservas hidrológicas do mundo.
Em meio às mudanças climáticas, especialistas alertam, que é urgente mudar comportamentos para que as próximas gerações não sofram com a falta de água de qualidade. Comportamento individual pode sim ajudar a criar uma cultura de uso racional de recursos hídricos. Empresas ajudam com produtos que vão de pasta de dente sólida a chuveiros ultramodernos.
Um estudo publicado pela organização Nature Water no mês passado, com base na avaliação de 9.505 bacias hidrográficas em todo o mundo, mostrou que a crise da água é mais preocupante do que se pensava até agora.
Alterações no clima e o aumento do consumo de água associado à urbanização acelerada e a elevação de padrões socioeconômicos em vários países podem afetar a disponibilidade de mananciais num futuro próximo, gerando risco de abastecimento principalmente na África, na Austrália e na América do Norte até 2050. Mas o Brasil não está isento, como têm mostrado crises hídricas cada vez mais frequentes aqui.
Prejuízos econômicos
A construção de novas barragens, o desmatamento nas margens de rios, o garimpo e a mineração ilegais, a poluição industrial e a contaminação pelo despejo irregular de esgoto geram um impacto profundo nas reservas de água doce que podem ser irreversíveis.
O resultado disso é o surgimento de doenças e o comprometimento da biodiversidade. Dedes os anos 1970, de acordo com o Relatório do Planeta Vivo do WWF, publicado no ano passado, as espécies que habitam cursos hídricos no mundo caíram 83%.
O prejuízo é também econômico, já que mais da metade do PIB mundial depende de recursos naturais, aponta o Relatório de Riscos Globais 2023, do Fórum Econômico Mundial, e o acesso ao saneamento é um fator de desigualdade social.
Não faltam, portanto, motivos para sair do individualismo e mudar mentalidades no uso da água, alerta Marta Camila Carneiro, coordenadora de Sustentabilidade e ESG na Arcadis e professora de MBAs da Fundação Getulio Vargas (FGV):
“Vivemos um abismo social muito grande, em que parte da população não tem acesso a água potável enquanto os mais abastados economicamente consomem como se fosse um bem que nunca fosse acabar”.
Um estudo do Instituto Trata Brasil revelou que, enquanto quase 35 milhões de brasileiros ainda não têm água potável, pouco mais de 40% do que sai das estações de tratamento são desperdiçados. Para mudar a estatística, é preciso cooperação entre cidadãos, concessionárias e prefeituras.
Marta observa que resiste no Brasil a falsa crença de que a água é um recurso ilimitado, levando muita gente a não pensar duas vezes antes de lavar carros e calçadas com mangueira ou pressionar continuamente a descarga do banheiro.
A falta de hidrômetros individuais em muitos edifícios e condomínios desestimula a economia, aponta a pesquisadora. Outro ponto é a qualidade da água. O descarte de medicamentos e absorventes no vaso sanitário pode contaminar cursos d’água e o solo, ameaçando a saúde de todos.
Agricultura sustentável
Mestre em saúde pública, a engenheira sanitarista e ambiental Aline Matulja, 38 anos, avalia que o sistema de abastecimento de água está sobrecarregado nas grandes cidades. Paulistana, ela encontrou em Ubatuba, no litoral de São Paulo, o lugar ideal para criar sua filha de dois anos em maior harmonia com a natureza. Mas isso não significa não se preocupar com o uso da água. Ao contrário.
Com uma horta no quintal, ela instalou um sistema que coleta e armazena água da chuva para regar seus pés de couve, batata, mamão, um canteiro de temperos e até uma plantação de abacaxis. O que ela não produz ali, faz questão de comprar de pequenos produtores adeptos da agroecologia, um modelo de plantio que dispensa agrotóxicos, estimula a biodiversidade e recupera solos e nascentes.
“Isso ensina muito à minha filha sobre o ciclo da água e o papel dela na existência dos seres vivos”, afirma Aline, que fundou o site Faz a Feira para conectar clientes e pequenos produtores agroecológicos.
Sustentabilidade como negócio
Muitas empresas têm encontrado na sustentabilidade uma oportunidade de negócio. É cada vez mais comum o surgimento de produtos que ajudam os consumidores a mudarem comportamentos para economizar recursos naturais. Quando se trata de preservação da água, as inovações vão de chuveiros ultramodernos à pasta de dente sólida.
A arquiteta Maisa Santos diz que recomenda aos clientes sempre que possível o uso de metais e utensílios com tecnologias voltadas para economia. Em projetos comerciais, conta ter grande adesão a torneiras automáticas de pressão e descargas duo, com um acionamento para resíduos líquidos e outro para sólidos.
Apenas com essas duas implementações, estima economia de 50% de volume de água. No caso de ambientes domésticos, orienta uso de torneiras com arejadores, que trazem sensação de maior volume de água e são baratos.
“Além de serem artifícios sustentáveis, geram economia direta no bolso do usuário no longo prazo”, aponta Maisa.
Uma das soluções oferecidas pela marca Deca é o chuveiro com entrada de ar, que proporciona a mesma sensação de volume e intensidade de água dos chuveiros convencionais, com menor quantidade de água.
“Um dispositivo acoplado ao produto atua de acordo com a pressão, fazendo a mistura de água e ar e ajustando a vazão de 12 litros por minuto”, explica Mateus Silveira, head do Design Office da Dexco.
A concorrente Lorenzetti possui modelos compatíveis com aquecedores a gás, solar e boiler elétrico, capazes de economizar água, esquentando instantaneamente assim que o registro é aberto.
“O modelo digital da linha Acqua Century possui um display, em que é possível escolher a temperatura ideal para banho com apenas um toque”, conta Paulo Galina, gerente de marketing da Lorenzetti. “Além disso, o chuveiro possui um timer que fica piscando ao atingir 8 minutos de banho, permitindo o uso racional da água”.
Ainda há no mercado soluções de uso individual, como a pasta de dente sólida Sana Green, feita com ingredientes veganos e naturais, sem nem uma gota de água. Para usar, basta mastigar as pastilhas e fazer a escovação. Como não há químicos na composição, não é preciso fazer enxague, sendo possível até engolir a espuma.
A solução, pioneira no Brasil, pode ser adquirida apenas pela internet por enquanto, mas deve estar disponível em pontos físicos em breve, segundo o dentista e fundador da empresa, Luciano Mazitelli.
Outra vantagem é a embalagem de vidro, que pode ser reabastecida, evitando descarte de lixo.
“Um tubo de pasta de dente convencional é muito difícil reciclar por ser um plástico alumínio. Ele acaba indo para o lixão e contamina os lençóis freáticos. E bilhões desse chegam aos aterros por ano”, destaca Mazitelli.
A marca de xampus e condicionadores sólidos Bars Over Bottles (B.O.B) também tem como proposta reduzir a quantidade de embalagens que viram lixo e podem contaminar rios e oceanos. Devido ao conceito waterless, ou seja, “sem água”, os produtos eliminam a necessidade de uso de recipientes plásticos e conservantes sintéticos na composição, que escoam pelo ralo e contaminam a rede hídrica.
Segundo a co-fundadora Andreia Quercia, cada barra de condicionador, equivale a três embalagens de condicionador de 300 ml que deixam de ser descartadas. O objetivo agora é ampliar a gama de produtos oferecidos:
“Nosso sonho é criar um banheiro sem plástico, de skincare a desodorantes”, revela Andreia. “Acredito que o consumidor está cada vez mais consciente que sua decisão individual gera impacto na cadeia”.
A produtora de conteúdo e consultora de sustentabilidade Cora Ayres, de 33 anos, que vive em um apartamento na Zona Oeste do Rio, tenta incorporar pequenos hábitos para evitar desperdícios. Reserva a água do cozimento de alimentos para regar plantas, por exemplo. E investe em reciclagem, separando o lixo para a coleta seletiva.
“Embora não seja tão visível aos olhos, a gente economiza muito quando recicla”, argumenta. “Toda fábrica, ao utilizar matéria-prima reciclada no lugar de uma virgem economiza muita água. Então, acaba sendo uma economia indireta de água”.
A economia indireta de água também pode ser feita por meio de hábitos alimentares, com a redução da ingestão de carne animal, que precisa muita água no processo de produção. Valendo-se desse cálculo, a Fazenda Futuro, que vende proteína vegetal em formato de hambúrgueres, salgadinhos e carne moída, atrai não somente veganos e vegetarianos como clientes, mas também consumidores que querem reduzir o próprio impacto ambiental.
De acordo com levantamento feito pela empresa em parceria da consultoria Blend, enquanto são usados em média 3.565 litros de água doce para fabricação de 230g de carne bovina, são necessários apenas 139 litros para a mesma quantidade da carne do futuro.
A economia de 3.426 litros de água por bandeja do produto seria equivalente a 25 duchas de 15 minutos, ou 25 lavagens de roupa em máquina de 5kg, ou 284 descargas de vaso sanitário.
Com um mercado ainda restrito, a maioria dos produtos sustentáveis acaba tendo valores maiores do que os convencionais. O ticket médio do burger do Futuro, por exemplo, é aproximadamente 30% maior do que um hambúrguer bovino no Brasil.
Marina Roale, head de Pesquisa do Grupo Consumoteca, alerta que, embora muitas pessoas já tenham consciência ambiental, o comportamento mais ativista fica restrito a bolhas de consumidores por causa do alto custo de produtos ecológicos. Principalmente em momentos de crise, diz que o fator econômico é decisivo na hora da escolha de uma marca:
“É como se pensasse: tenho que salvar o mundo, mas antes tenho que pagar meus boletos no final do mês. Sustentabilidade agrega muito valor a uma marca, mas sozinha não converte compra”.
Fonte: O Globo