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DESMATAMENTO

Destruição da biodiversidade está prejudicando os remédios do futuro

Da casca do salgueiro aos mosquitos, a natureza tem sido uma fonte vital de medicamentos por séculos. Mas a perda de espécies em decorrência da atividade humana está colocando isso em risco

24 de outubro de 2021
Katherine Latham (The Guardian) | Traduzido por Cibele Garcia
9 min. de leitura
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Foto: Ilustração | Pixabay

Usado tradicionalmente como analgésico para dores de cabeça, as campânulas-brancas são conhecidas hoje por retardar o estágio inicial da demência. Nos anos 1950, um alcalóide natural chamado galantamina foi extraído dos bulbos. Atualmente, uma versão sintetizada é usada no tratamento de Alzheimer e os cientistas estão investigando mais para saber se as campânulas-brancas também podem ser eficazes no tratamento de HIV.

Contudo, a colheita excessiva resultou em muitas das espécies da campânula-branca se tornarem ameaçadas. A campânula-branca não é a única – as plantas são uma fonte abundante de potenciais novos medicamentos, geralmente nos proporcionando modelos químicos para o design de novos remédios. Mesmo assim, os cientistas do mundo todo afirmam que o uso insustentável de plantas medicinais está contribuindo para a perda de biodiversidade e poderia limitar as oportunidades de fontes medicinais da natureza no futuro.

A Drª Cassandra Quave, uma médica etnobotânica e professora associada na Universidade Emory, em Atlanta, Geórgia, diz: “No momento que precisamos mais delas, estamos correndo risco de perder muitas espécies importantes.”

Uma longa história de saúde

Os seres humanos têm usado a natureza para cura desde antes da língua escrita. A primeira evidência documentada foi encontrada em uma placa de argila de 5000 anos em Nagpur, Índia, a qual se refere a mais de 250 plantas. A medicina tradicional chinesa remonta a milhares de anos, os primeiros escritos encontrados a respeito de cascos e ossos de tartaruga são do século 15 antes de Cristo. O Papiro Ebers, um pergaminho egípcio de 3500 anos, menciona a casca de salgueiro a partir da qual a aspirina foi desenvolvida posteriormente.

A Drª Melanie-Jayne Howes, pesquisadora chefe em biologia química na Kew Gardens, explica como eles pegam os remédios tradicionais e investigam para ver se realmente há base científica para seu uso.

“A droga antimalárica artemisinina, encontrada na Artemisia annua, foi desenvolvida desse modo. A Artemisia annua foi usada na medicina tradicional chinesa por milhares de anos para tratar febres, que podem ser um sintoma da malária. A artemisinina e seus derivados agora são peça chave na nossa luta contra a malária.”

Os maiores assassinos da humanidade

A penicilina, a morfina e alguns dos quimioterápicos de câncer mais eficazes que temos hoje derivam de fontes naturais, e muitos dos maiores assassinos da humanidade, incluindo o câncer e doenças cardíacas, são tratados com medicamentos originários de plantas e fungos. Segundo a Organização Mundial da Saúde, 11% dos medicamentos essenciais do mundo provêm de angiospermas.

Descobertas recentes incluem o farnesol, encontrado em frutas e ervas, usado para tratar o Parkinson. A Bacopa monnieri, usada por séculos na Ásia para melhorar as funções cerebrais, recentemente mostrou reduzir a inflamação no cérebro. E uma proteína isolada da beterraba está sendo explorada como um alvo para doenças neuro degenerativas e inflamatórias, tais como o Alzheimer e esclerose múltipla.

Em junho deste ano, os cientistas isolaram uma molécula, extraída das folhas do castanheiro europeu, com o poder de neutralizar a bactéria estafilococo que é perigosa e resiste a medicamentos. Eles esperam sintetizar um medicamento que irá tratar a Staphylococcus aureus (MRSA), resistente à meticilina, apesar de sua resistência a antibióticos.

Quave diz: “na era pré antibiótica, não era fora do comum morrer após o parto e em decorrência de infecção na cirurgia. Mesmo um simples arranhão no jardim podia levar a uma infecção fatal. A ameaça da resistência antimicrobiana é efetivamente um retorno às condições similares: a era pós antibiótica. Atualmente, perdemos cerca de 700000 pessoas no mundo, a cada ano, devido a infecções resistentes a antimicrobianos (AMR). Até 2050, está estimado que 10 milhões ao ano morrerão em decorrência de infecções AMR. Eu acredito que a natureza é a chave para lutar contra essas e outras ameaças emergentes à saúde.”

Uma cura para o câncer do fundo do mar

Medicamentos são encontrados em qualquer canto da Terra. O fungo crescendo no pelo de preguiças pode ser usado no combate a parasitas, bactérias e câncer. Os remédios derivados do veneno de cobra tratam problemas do coração. Os cientistas chegaram até a descobrir uma bactéria marinha que vive em uma profundidade de 6500 pés que eles esperam que possa proporcionar uma cura para o câncer cerebral agressivo.

Os recursos da natureza podem ser usados de outras maneiras também, para facilitar a pesquisa ou procedimentos médicos. O sangue azul reluzente do caranguejo-ferradura tem sido utilizado há tempos para detectar impurezas em medicamentos e vacinas, e foi usado no desenvolvimento de vacinas da Covid. Microalgas, conhecidas como diatomáceas, têm estrutura de paredes celulares porosas que podem ser usadas como veículos para condução de drogas no corpo. Elas também estão sendo investigadas para o uso em imunoterapia e terapia combinada para tratar câncer.

Outras aplicações são inspiradas na natureza. Uma cola que imita o adesivo natural feito pelas cracas ajuda os ferimentos a cicatrizar mais rápido. Um material à prova de bactérias, e inspirado na pele de tubarão, é usado em cateteres urinários e curativos para feridas profundas. Uma agulha hipodérmica que imita a probóscide de um mosquito promete injeções quase indolores.

O quão pouco sabemos

Contudo, estamos perdendo espécies mesmo antes de sabermos sobre elas. A poluição, a exploração excessiva de recursos naturais, a introdução de espécies invasivas, a mudança do uso da terra e a degradação em decorrência da urbanização e agricultura – a atividade humana é a principal causa da perda da biodiversidade. Agora, os especialistas estão indagando, a perda de biodiversidade pode ser uma ameaça para a humanidade tão grande quanto a mudança climática?

Howes afirma: “as pessoas aproveitaram as propriedades de apenas uma pequena parte de espécies. Alguns dos químicos que as plantas e fungos produzem são tão complexos que ainda não podemos produzi-los sinteticamente – como a vincristina, por exemplo, empregada no tratamento de leucemia em crianças, e vinblastina, utilizada no tratamento do linfoma de Hodgkin.”

A taxa de perda de espécie está estimada entre 1000 e 10000 vezes mais que a taxa de extinção natural, embora seja impossível saber ao certo uma vez que não temos ideia de quantas espécies habitam a Terra, com estimativas variando entre 5.3m e 1tn. Entretanto, sabemos que a taxa de extinção está acelerando. As populações de vida selvagem caíram mais de dois terços em menos de 50 anos, segundo a WWF, enquanto que a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) estima que quase um terço de todas as espécies estão ameaçadas de extinção.

O grupo mais diverso de todos

Segundo Ross Piper, entomologista, zoólogo e pesquisador visitante na Universidade de Leeds, nós mal chegamos à superfície do uso farmacêutico potencial do que é o grupo mais diverso de todas as criaturas vivas.

Piper diz: “descrevemos apenas um pouco mais de um milhão de espécies de insetos, mas existem milhões mais. E mesmo os que têm nome, para a grande maioria isso é tudo que sabemos. Em termos de ecologia, como vivem, onde vivem, com quais outras espécies eles interagem – nada disso é conhecido. Com cada pedacinho de habitat que é perdido, estamos garantindo a perda de espécies que são únicas no universo.”

Os insetos podem ser encontrados em todo habitat terrestre e aquático na Terra. Para protegê-los da – ou atacar a – enorme variedade de organismos que entram em contato, os insetos desenvolveram uma grande quantidade de coquetéis químicos . Esses incluem complexos antimicrobianos produzidos por larvas, os quais podem ser usados como agentes antivirais e antitumorais, e o veneno como o da vespa Polybia paulista, que se acredita atingir e destruir células cancerígenas.

Porém, os espécimes com potencial médico são tipicamente difíceis de encontrar devido ao número absoluto de insetos disponíveis para investigar. Os insetos são muito difíceis de criar em cativeiro e, como são tão pequenos, é complicado extrair quantidades suficientes de material útil. Atualmente, contudo, os cientistas podem explorar todo o DNA do organismo.

“É uma área historicamente negligenciada,” afirma Piper. “No passado, a pesquisa era limitada a espécies que poderiam ser criadas em cativeiro em grandes quantidades, tais como grilos e moscas soldado. Agora podemos conseguir o suficiente de apenas alguns indivíduos, ao invés de milhares ou milhões.”

Medicamentos para gerações futuras

Um aumento na demanda por medicamentos de origem natural é, segundo um relatório da Kew Gardens de 2020, um fator determinante na perda da biodiversidade. Dentre as espécies colhidas em excesso, o caranguejo-ferradura está classificado hoje como vulnerável e o caranguejo-ferradura de três espinhas está extinto localmente no Taiwan. O Teixo do pacífico, a fonte original da droga quimioterápica paclitaxel, está classificado como quase ameaçado pela IUCN e sua população ainda está em uma espiral descendente rumo à extinção.

“Milhares de árvores do teixo do pacífico foram necessárias para a obtenção de paclitaxel o suficiente para o uso clínico,” diz Howes. Ela explica como um maior entendimento da química vegetal pode ajudar a encontrar mais maneiras sustentáveis para a obtenção de medicamentos da natureza para salvaguardar remédios essenciais para as gerações futuras.

“No momento temos uma melhor compreensão sobre as vias biossintéticas, os meios que as plantas e fungos produzem químicos. Podemos transferir essas vias biossintéticas para organismos como a levedura. As fábricas de células de leveduras podem, então, assumir o papel de fabricante desses químicos medicinais, reduzindo a necessidade de colher espécies da natureza. Essa abordagem já foi utilizada com sucesso para aumentar os rendimentos da artemisinina.”

Em Kew, os espécimes do mundo todo estão sendo armazenados em bancos de sementes. Eles estão descobrindo – e assim conservando – novas espécies ao ler o DNA de plantas e fungos. Estão examinando o nível de ameaça às espécies para acrescentá-las na lista vermelha de espécies ameaçadas da IUCN, a qual guia políticas e estratégias de conservação. Em hotspots de biodiversidade, como aqueles nos trópicos, a Kew está aumentando a consciência local da importância da vida vegetal e influenciando as autoridades nacionais a priorizarem a proteção de plantas e seus habitats.

Em outros lugares, a inteligência artificial e os cientistas estão ajudando a identificar espécies usando aplicativos e um banco de dados genético de código aberto objetiva sequenciar os genomas de toda a vida Terra.

“Os avanços na ciência e tecnologia proporcionam oportunidades futuras para o descobrimento de novas moléculas da natureza, uma infinidade de vias metabólicas para sua síntese e mais meios sustentáveis de obtê-las, apoiando soluções potenciais para os desafios da saúde global,” escreve Howes e Quave e muitos outros cientistas do mundo em um relatório recente.

A biodiversidade é vida na Terra, em todas as suas inumeráveis interações, em todas as formas. De acordo com Quave, escrevendo sobre o potencial das plantas de criarem futuros antibióticos: “se já existiu um momento para cultivar nosso conhecimento e explorar o poder químico das plantas, o momento é esse.”

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