O mundo está derrubando menos árvores do que há 10 anos, mas, no Brasil, as florestas ainda pagam caro pelo avanço do setor agropecuário, segundo um relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) divulgado ontem. Globalmente, o desmatamento reduziu pela metade entre 2015 e 2025 — em uma década, a perda líquida foi de 4,12 milhões de hectares por ano. Nesse período, o anfitrião da COP-30, conferência climática prevista para o próximo mês em Belém (PA), foi responsável por 70% do desflorestamento: 2,94 milhões de hectares destruídos por ano, o equivalente a 12 quilômetros quadrados por minuto.
Segundo o documento da FAO, mesmo abrigando 12% das florestas do planeta, o país está entre os que mais devastam esses ecossistemas. O documento destaca que, além do Brasil, outras quatro nações concentram metade dos biomas florestais globais: Rússia, Canadá, Estados Unidos e China. É nos trópicos — especialmente na Amazônia — que a devastação ocorre com mais intensidade. A principal causa é a expansão agrícola, associada à criação de gado e à produção de grãos, com as queimadas ampliando ainda mais a área degradada.
Apesar da gravidade, a FAO reconhece avanços recentes. O Brasil reduziu em 49% o ritmo de perda líquida de florestas em comparação com a última década do século 20. O resultado reflete, segundo o relatório, a retomada de políticas de controle ambiental e de monitoramento por satélite, especialmente em 2023, quando a Amazônia registrou melhora significativa.
Reativação
Entre as medidas citadas, estão a maior fiscalização de áreas protegidas, a reativação de operações contra o desmatamento ilegal e recomposição de conselhos ambientais. Mesmo assim, os desafios continuam significativos. “O Brasil tem um patrimônio florestal gigantesco, mas enfrenta uma pressão econômica brutal sobre a terra”, observa a FAO no documento. O organismo da ONU destaca que o país tenta equilibrar o crescimento do agronegócio com a preservação ambiental, mas ainda faltam incentivos financeiros e políticas de longo prazo que sustentem o desenvolvimento rural sem desmatamento.
“Infelizmente, o Brasil continua sendo o país que mais desmata florestas tropicais. Mesmo com a diminuição, a gente continua com taxas altíssimas, principalmente por causa da expansão agropecuária”, diz o engenheiro florestal André Ferretti, membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza (RECN) e gerente sênior de economia da biodiversidade da Fundação Grupo Boticário. “O garimpo ilegal também tem crescido enormemente e tem destruído muitas áreas de florestas, especialmente principalmente na Amazônia.”
O especialista lembra que, entre as muitas consequências do desmatamento, está a contribuição com as mudanças climáticas. “O mundo perdeu 110 milhões de hectares de floresta primária desde 1990 e isso é uma tragédia tanto para a biodiversidade quanto para o equilíbrio climático”, diz. “No Brasil, estima-se que restou menos de 1% de florestas de araucárias com características climáticas.” Ferretti esclarece que as áreas florestais secundárias — que foram se regenerando com o tempo — não cumprem o mesmo papel das originais, que levaram milênios para se constituir. “A floresta secundária tem uma diversidade genética menor, tem muito menos possibilidade de abrigar espécies capazes de se adaptar aos novos regimes climáticos”, aponta.
Como anfitrião da COP30, o Brasil pretende colocar a proteção das florestas tropicais no centro das discussões globais. O governo federal propôs a criação do Tropical Forest Finance Fund (TFFF), um fundo internacional voltado ao financiamento de ações de conservação e restauração. Em nota sobre a proposta, o Ministério do Meio Ambiente afirma que “não se trata apenas de evitar o desmatamento, mas de garantir que as comunidades que vivem na floresta possam ter renda sem precisar destruí-la”. Embora o modelo tenha potencial, especialistas destacam que são necessárias metas claras, além da transparência, para que o fundo não termine como promessa vazia.
Na apresentação do relatório divulgado ontem, o diretor-geral da FAO, Qu Dongyu, destacou o papel fundamental do anfitrião da COP30 nas negociações climáticas. “O sucesso da COP30 dependerá de como o Brasil conseguirá demonstrar que é possível conciliar produção agrícola, crescimento econômico e conservação ambiental”, disse. “Ser guardião da maior floresta tropical do mundo não é apenas um privilégio: é uma obrigação moral e climática.”
Três perguntas para
Daniel Silva, especialista em conservação do WWF-Brasil
Quais são as principais causas da persistência do desmatamento, especialmente em países tropicais?
Basicamente, quando falamos sobre as causas da persistência do desmatamento, a principal delas é o uso de um modelo equivocado de expansão da área agrícola. Ainda seguimos expandindo fronteiras sobre áreas de floresta, mesmo já existindo boas práticas e tecnologias que permitem aumentar a produção sem desmatar. No Brasil, as causas principais são a expansão das pastagens e da soja, essas duas frentes são as mais relevantes. Além disso, há um fator muito importante que é a especulação fundiária, um grande motor desse processo de avanço sobre as florestas. Essa frente de expansão continua ativa porque ainda faltam muitas coisas no país: aplicar a lei, aprimorar e implementar políticas públicas que incentivem a produção sustentável, incentivos econômicos robustos para produtos sustentáveis e a implementação efetiva dos compromissos assumidos pelas grandes empresas nas suas cadeias produtivas.
A expansão de florestas plantadas compensa as perdas das naturais, em termos de biodiversidade e sequestro de carbono?
Definitivamente, não. A biodiversidade dessas áreas é muito menor, e levaria décadas para alcançar algo parecido com a diversidade das florestas primárias, isso quando chega a acontecer. Nesse processo, há perda de espécies e risco de extinção, o que é irreversível. Em relação ao carbono, a situação é parecida: o acúmulo de carbono em florestas secundárias ocorre de forma muito mais lenta, e elas nunca atingem o mesmo nível de estoque e de ciclagem que as florestas primárias têm. Essas áreas de regeneração podem, sim, contribuir com outros serviços ecossistêmicos, como regulação da água, proteção do solo e oferta de produtos da sociobiodiversidade, mas em escala e qualidade inferiores.
A destruição florestal pode comprometer o papel do Brasil como líder ambiental na COP30?
Com certeza, ter um desmatamento alto, ou pelo menos que não consegue ser reduzido de forma significativa e de forma contínua, é superprejudicial para a reputação e para a credibilidade. O Brasil é um país que pode se posicionar como um líder na questão climática, porque tem um potencial muito grande de continuar produzindo, mas de forma sustentável, de proteger a floresta e de valorizar a floresta em pé. Mas, tudo isso vai depender de vários aspectos. A visão do corporativo, das empresas, implementar os compromissos de sustentabilidade que já foram firmados; a construção e a implementação de políticas públicas fortes para conseguir incentivar a produção sustentável e frear o avanço do desmatamento; a implementação também de programas de restauração florestal, enfim, tem programas, mas esses programas têm que avançar mais rápido ainda. (PO)
Saldo final
Trata-se da redução florestal total em um período considerando tanto o desmatamento quanto a recuperação da floresta. Ou seja, é o saldo entre o que foi removido (desmatamento bruto) e a área reflorestada ou que se regenerou sozinha.
Priincipais conclusões
O relatório da FAO, divulgado ontem, refere-se ao período de 2015 a 2025.
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Perda líquida anual de florestas no mundo: 4,12 milhões de hectares. Perda líquida anual no Brasil: 2,94 milhões de hectares.
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O Brasil é responsável por mais de 70% da perda global de florestas tropicais.
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Ritmo de desmatamento mundial: 10,9 milhões de hectares por ano, o equivalente a 12 km² de florestas destruídas por hora.
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Participação do Brasil na cobertura florestal mundial: 12%.
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Redução da perda líquida brasileira: queda de 49% desde os anos 1990.
Fonte: Correio Braziliense