A mudança climática é frequentemente analisada do ponto de vista global, com o aumento das temperaturas médias da Terra registradas por agências internacionais, ou ainda as emissões de carbono dos países, que potencializam o efeito estufa e o aquecimento. Um centro de pesquisa da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) conseguiu chegar a indicadores que mostram como a mão do homem também gera mudanças perigosas no microclima das regiões, com a perda de floresta nativa afetando a chuva e a temperatura dessas localidades, por exemplo.
Os achados mais recentes dos pesquisadores mostram os impactos do desmatamento no Cerrado, bioma considerado “coração das águas” no Brasil, dada a concentração de bacias hidrográficas. Em 40 anos, a estação de chuva na região atrasou cinco semanas e diminuiu 8,6% em volume de precipitação. As temperaturas estão hoje 1,5°C mais altas do que em 1980, referência temporal para os dados analisados.
O impacto do desmatamento sobre os chamados serviços ecossistêmicos (tudo que uma floresta saudável faz pela água, pela sombra, pela vegetação e pela fauna) é conhecido há décadas, afirmam especialistas consultados por Um Só Planeta. A pesquisa da UFMG consegue, no entanto, mostrar em números essa realidade.
O impacto da mudança climática local atinge em cheio a potente agricultura na região, que usa frequentemente o sistema de dupla safra, comum no plantio de soja e milho, por exemplo, em que duas lavouras diferentes são cultivadas na mesma estação chuvosa, uma vantagem do clima no Brasil. Encolher esse período e diminuir a quantidade de água ofertada naturalmente vai ter impacto econômico, alerta a pesquisa, que deve ser publicada em revista científica internacional ainda este semestre, e que a reportagem teve acesso a alguns dos achados principais.
Mudança climática no Cerrado (1980-2020)
- 1,5°C de aquecimento na temperatura
- 36 dias de atraso na temporada de chuvas
- -8,6% em volume de precipitação
- 99% de área com dupla safra enfrenta atrasos da estação chuvosa
- 61% dessa mesma área sofre com a redução no volume de chuvas
“A floresta acumula água, e a sombra das árvores diminui a temperatura da superfície. Em áreas de agricultura aberta, sem cobertura, o calor mata microorganismos da superfície do solo e o impacto da água da chuva [sem o obstáculo da floresta nativa] cria uma compactação que muda a permeabilização do solo”, explica Giampaolo Pellegrino, coordenador do portfólio de pesquisa em mudanças climáticas da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária).
O “telhado” provido pela floresta, explica Pellegrino, assim como o “tapete” formado por folhas e galhos no chão, seguram o primeiro impacto das chuvas, fazendo a água escorrer aos poucos até o chão, o que facilita a absorção e alimentação dos lençóis freáticos. Ao desmatar a área, essa condição se perde e ocorre o desequilíbrio, que, como mostra o estudo da UFMG, tem implicações imediatas no local.
Dos 8,1 milhões de hectares cultivados em sistema de dupla safra no Cerrado (comum no plantio de soja e milho, por exemplo), 99% enfrentam atrasos no início da estação chuvosa e 61% sofrem com a redução no volume de chuvas, apontam dados apurados pela pesquisa.
“A conservação deixou de ser uma estratégia ambientalista, hoje é uma estratégia econômica”, defende Argemiro Leite-Filho, um dos pesquisadores do CSR/UFMG (Centro de Sensoriamento Remoto da universidade), que desenvolve este monitoramento. “A dupla safra, por exemplo, é algo que raros países do mundo conseguem fazer, usando uma estação chuvosa para duas culturas ao mesmo tempo, uma otimização da terra fantástica, mas que depende de uma estação chuvosa suficiente. É importante enxergar isso.”
A soja precisa de um mínimo de 450 milímetros de água para obter bom rendimento, segundo a Embrapa e outras publicações especializadas. Considerando uma perda de chuva na casa de 9%, áreas mais secas do Cerrado podem ser prejudicadas, afirma Leite-Filho. A média anual de chuvas no bioma é calculada entre 1200 e 1800 milímetros.
É no Cerrado também que uma importante fronteira agrícola, a região do Matopiba (intersecção entre os estados de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), registra os índices mais altos de emissões de carbono devido a queimadas, além de elevar o bioma à condição de maior alta no desmatamento no Brasil, à frente da Amazônia, segundo dados do governo federal. Estudo publicado pelo Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) este mês aponta que as emissões de queimadas desta região específica nos últimos 19 meses equivalem a 28 anos de poluição da cidade de São Paulo.
Pesquisa quer conscientizar para novos métodos no agro
Para Leite-Filho, a importância em trazer dados locais é aumentar a conscientização dos produtores do agro, atentando para novos métodos de produção que não dependam de desmatamento, uma questão na mira de mercados internacionais como a União Europeia. Trata-se, como destaca o cientista, de uma situação de ganho ambiental e econômico local, com uma contribuição no horizonte mundial de combate ao aquecimento global e seus eventos extremos.
A estação chuvosa do Cerrado, que antes começava em 1º de setembro, passou a iniciar em 15 de outubro, observam os pesquisadores. Em áreas onde mais de 80% da vegetação nativa foi destruída, os atrasos no início da estação chuvosa e a redução das chuvas durante a primeira e a segunda safra são mais frequentes do que em áreas onde a porcentagem de vegetação degradada é inferior a 20%.
Para chegar a estes resultados, os cientistas analisaram os impactos a partir de áreas de 28 quilômetros quadrados, considerada a escala local. “Calculamos que se o produtor, na escala de 28 km, decidir expandir a cultura, ele vai produzir mais. Só que essa adição de produtividade que ele tem é menor do que ele perde em redução da capacidade da fazenda como um todo por causa da mudança climática regional. Se houver aumento da produção na mesma área plantada, você consegue ter uma produção maior, com um custo menor”, afirma Leite-Filho.
“Intensificar não significa degradar”, argumenta Pellegrino. “No ambiente da fazenda de comodities em larga escala, o ideal seria manter regiões de vegetação como elemento de proteção hídrica, para infiltração [de água] e prevenção de erosão, usar plantio direto para proteger a vida no solo e a agua, e diversificar e rotar culturas. Essas porções preservadas fazem controle biológico de pragas e reduzem a necessidade de pesticidas. Vai também melhorar o microclima. O problema é que o modelo de produção é explorar ao máximo”, destaca o pesquisador da Embrapa.
Uso do solo
A plataforma TerraClass, uma parceria entre a Embrapa e o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) monitora a evolução do uso do solo no Cerrado desde 2018. Em quatro anos analisados, até 2022, o desmatamento no bioma pulou de 7,1 mil quilômetros quadrados para 10,5 mil quilômetros quadrados anuais.
No período entre 2018 e 2022, as culturas agrícolas temporárias (que incluem soja e milho, intensivas) apresentaram uma expansão de área da ordem de 17%, afirma nota técnica publicada em agosto. Segundo a pesquisa da UFMG, o Cerrado tem 84% do seu território em propriedades privadas. São 1.065 propriedades, das quais 131 (12%) tiveram desmatamento registrado. Dos 131 episódios de desmate, apenas 23 (18%) foram classificados como “potencialmente ilegais”.
Na Amazônia, o Código Florestal brasileiro estipula a obrigatoriedade de preservação de 80% do terreno situado em área de florestas. Já no caso do Cerrado, a obrigação de preservação cai para 20%.
Ampliando o escopo, os dados do TerraClass mostram que, entre 2018 e 2022, a agricultura anual foi ampliada em 22% nos biomas Amazônia e Cerrado somados. Mais de 94% desta expansão, aponta a plataforma, ocorreu sobre usos agropecuários já consolidados, principalmente sobre áreas de pastagem. Aproximadamente 1% desta expansão se deu sobre áreas de vegetação natural primária e secundária.
“Estes resultados demonstram que o crescimento da área agrícola nestes dois biomas ocorreu prioritariamente sobre as pastagens, indicando que a agricultura tem se expandido sobre áreas já antropizadas e poupado a necessidade de abertura de novas áreas naturais”, explica o pesquisador Júlio Esquerdo, pesquisador da Embrapa Agricultura Digital e um dos coordenadores do projeto.
Levantamento publicado em junho pela rede MapBiomas mostra que, em 2023, a superfície de água do Cerrado foi a maior registrada desde 1985, devido à quantidade de reservatórios na região. A alta foi 11% acima da média histórica no bioma, chegando a 1,6 milhão de hectares, ou 9% do total nacional de corpos hídricos.
Os corpos de água naturais, por sua vez, perderam 696 mil hectares – queda de 53,4%. No ano passado, as águas superficiais naturais ocupavam 608 mil hectares do Cerrado ou 37,5% da cobertura de água do bioma. Os 62,5% restantes ficaram divididos principalmente entre hidrelétricas (828 mil hectares) e reservatórios (181 mil hectares).
Amazônia
Estudo publicado pelo grupo da UFMG em fevereiro aborda a mudança climática local relacionada às práticas agrícolas na Amazônia. O artigo, divulgado no International Journal of Climatology, revela detalhes semelhantes ao impacto agora medido no Cerrado.
Entre 1999 e 2019, regiões amplamente desmatadas na Amazônia registraram um atraso de aproximadamente 76 dias no início da estação chuvosa agrícola, apontam os pesquisadores. Essas regiões também experimentaram uma redução de 360 milímetros na precipitação e um aumento na temperatura máxima do ar de 2,5°C, bastante acima da média mundial, que vem beirando 1,5°C, segundo agências internacionais.
Áreas de 28 quilômetros quadrados com menos de 20% de perda florestal experimentaram uma redução no volume anual de chuvas em aproximadamente 100 milímetros por década. Em contraste, territórios idênticos com mais de 80% de perda florestal experimentaram uma redução média de aproximadamente 180 milímetros por década, aponta o artigo, o que equivale a dias de chuva.