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FASCINANTE

Descobertas da bioacústica no reino animal: elefantes que se nomeiam e alfabeto dos cachalotes

20 de agosto de 2024
12 min. de leitura
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Foto: Ilustração | Freepik

Um fato inusitado veio ao mundo no primeiro semestre de 2024. Em um estudo recente publicado na revista Nature, foi desvendado um “alfabeto” fonético complexo utilizado por cachalotes para comunicação. Desde 2020, uma equipe de pesquisadores do Projeto Ceti vem observando um grupo desses cetáceos que vive próximo à Dominica, uma ilha no Caribe, e registrando os sons emitidos por ele.

Os cachalotes emitem sons semelhantes a cliques, de forma rítmica, e cada padrão identificado pelos pesquisadores é chamado de “coda”.

Depois de estudar quase 9 mil gravações com ajuda de inteligência artificial, os pesquisadores do Ceti identificaram 156 “codas” distintos, que funcionam de forma similar aos fonemas, unidades de som que utilizamos para compor palavras na linguagem humana. Nessa forma de comunicação, os cachalotes contam tanto com estruturas básicas, que se repetem frequentemente, quanto com improvisos e ornamentações, como a mudança de tempo e o alongamento ou encurtamento de uma nota, indicando uma complexidade surpreendente. A autora do estudo, Pratyusha Sharma, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), explica que essas variações são contextuais, como uma mudança de tom de voz na linguagem humana, que pode mudar completamente o significado de uma frase, mesmo utilizando as mesmas palavras.

Passando do mar para a terra, em junho de 2024, foi a vez dos elefantes brilharem com suas formas de comunicação, também na revista Nature. Um estudo liderado pelo ecologista comportamental Mickey Pardo, pesquisador de pós-doutorado na Universidade Cornell, prestou evidências de que os gigantes africanos utilizam nomes próprios para se comunicar uns com os outros. Os pesquisadores gravaram vocalizações de grupos de fêmeas adultas selvagens e seus filhotes em dois locais de campo no Quênia, identificando qual elefante estava chamando e também quem eles estavam chamando. Esses animais podem produzir estrondos altos e de baixa frequência que viajam pelo solo como ondas sísmicas, atingindo uns aos outros a uma distância de até seis quilômetros de distância. Nessa situação, o interlocutor precisa indicar para quem está direcionando sua mensagem. Utilizando um algoritmo de inteligência artificial, os cientistas conseguiram acertar a identidade do elefante receptor da mensagem com 27,5% de precisão — significativamente melhor do que o acaso. As chamadas para o mesmo receptor das mensagens também eram mais semelhantes entre si do que chamadas para receptores diferentes, dando mais suporte à ideia de que o nome de um elefante representa sua identidade para todo o grupo. Além disso, elefantes selvagens responderam a gravações de chamadas inicialmente endereçadas a eles, o que significa que essas chamadas devem conter alguma forma de informação de identificação exclusiva.

A descoberta do “alfabeto” fonético dos cachalotes e da utilização de identificações exclusivas entre os elefantes são avanços notáveis da bioacústica, campo de pesquisa dedicado ao estudo dos sons emitidos pelos animais. A área vem crescendo no Brasil e no mundo desde o século passado. De natureza multidisciplinar, o campo envolve bases neurofisiológicas, comportamentais, análise acústica de produção e detecção sonora e investiga a relação dos sinais sonoros com os animais e o meio em que vivem. Os estudos procuram evidências acerca da evolução dos mecanismos acústicos em outras espécies e possíveis formas de linguagem.

Jacques Veillard e a era analógica

Patrícia Monticelli, professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP de Ribeirão Preto e pesquisadora da área, conta sobre o início das atividades de pesquisas bioacústicas no Brasil. “A vinda do professor Jacques Veillard é o marco inicial da área no cenário brasileiro. O francês, já falecido, é responsável pela criação do primeiro laboratório brasileiro de estudos bioacústicos na Unicamp. Hoje existe uma fonoteca que leva o nome dele, justamente porque boa parte dos arquivos veio da digitalização das gravações analógicas que ele fazia em campo. Ele desenvolveu um extenso trabalho de gravação e estudo das aves, utilizando um microfone com uma parábola em volta para poder amplificar o som dos animais e fazer algo bem dirigido, evitando o ruído. Ele foi pioneiro e gravou diversas espécies brasileiras. Uma boa parte das gravações foi digitalizada e está disponível na fonoteca que leva seu nome.”

Patrícia conta ainda que muita coisa mudou desde a época em que o pioneiro Jacques Veillard inaugurou suas pesquisas no Brasil. “Imagine um laboratório com um monte de fita de rolo, só com materiais analógicos, porque ele gravava na época de forma analógica e inclusive foi bem resistente a passar para gravação digital. Mas é muito mais fácil ir para campo com material de hoje em dia, que é muito mais leve e tem uma capacidade de armazenamento bem maior, com os cartões de memória – antes se usava as antigas fitas DAT, um equipamento mais rústico”, acrescenta a professora.

Tirando as vendas

A evolução da bioacústica está intimamente ligada à evolução dos dispositivos de gravação e conversão de dados analógicos para o digital, além da capacidade de armazenamento disponível; fitas cassete, disquetes, CD’s e finalmente os discos rígidos e atuais equipamentos como SSD e cartões de memória atuais. Com a digitalização, microfones e gravadores especializados e uma maior capacidade de processamento de dados, uma vasta gama de sons animais, que antes passavam despercebidos, começa a ser desvendada pelos especialistas.

O professor Marcos Oliveira, do Instituto Oceanográfico da USP e pesquisador do Laboratório de Conservação de Mamíferos Aquáticos, destaca que, junto ao avanço de dispositivos digitais, a aplicação da inteligência artificial nos dados obtidos é o marco fundamental da história dos estudos no ramo. “De 1970 até os dias atuais aconteceu uma revolução tecnológica sem precedentes. Os equipamentos de acústica avançaram, as formas de avaliação de dados avançaram e quando chegamos no começo deste século paramos em um beco sem saída. Porque os equipamentos se tornaram obsoletos. Estávamos com um monte de bancos de dados e de sons e não conseguimos avançar, não havia como processar esses dados de forma adequada. Nesse contexto, foram duas as grandes mudanças históricas que destravaram o processo. A primeira, a tecnologia digital para a gravação desses sons, a entrada desse componente mostrou que as informações captadas até então eram incompletas. Era como se a gente estivesse desvendando uma série de emissões sonoras dos animais que antes não eram possíveis de ser captadas com os equipamentos do passado, e a tecnologia digital revelou uma parte muito maior desses sons para a comunidade científica. O segundo grande avanço é a inteligência artificial, sem sombra de dúvidas. Hoje, já não é mais necessário ficar um ser humano atrás de um espectrograma analisando segundos e segundos de arquivos de horas ou de dias de duração. A inteligência artificial acelerou o processo de análise. Então, tecnologia digital e inteligência artificial estão trazendo agora, para a compreensão de baleias e golfinhos, para morcegos, para recifes de corais, para elefantes, para a natureza em geral, um avanço sem precedentes por causa da acústica”, explica Marcos Oliveira.

A professora Patrícia explica como essas tecnologias impactam a prática do dia a dia da sua profissão. “Hoje, nós usamos gravadores e microfones próprios para cada tipo de emissão sonora estudada. Então, o gravador que grava ultrassom é diferente do utilizado para infrassom, tem características diferentes. Além disso, muitos deles são programáveis, de forma que não é necessário que um humano fique manuseando em tempo real. Isso cria a possibilidade de você instalar um microfone no ambiente e programá-lo para gravar nos horários de atividade do animal sem a necessidade da presença física do pesquisador. Mamíferos, por exemplo, se assustam muito com a presença humana. Então, essa possibilidade nos dá acesso a uma informação que, até então, não era possível. Era muito raro alguém ter uma gravação de mamífero.”

Ela prossegue: “Após a gravação, temos outra etapa muito beneficiada pela evolução da tecnologia. A análise do som. Em geral, o que a gente faz é descrever as características desse som em termos de frequência, tempo e intensidade, e isso serve como uma identificação de padrões. Então, o que os animais produzem de som? Alguns produzem cinco sons diferentes, outros produzem 20, 25, os primatas, por exemplo, fazem várias vocalizações diferentes. Nós descrevemos esse repertório de vocalizações dos animais de uma forma contextualizada, entendendo que tipo de padrão é utilizado em cada situação. Então, você tem horas e horas e horas de gravação, porque a ideia desses equipamentos é justamente te dar uma possibilidade enorme, uma amostragem enorme de sons. Analisar isso de forma humana é impossível, por isso agora a gente está nessa era de desenvolver formas automatizadas de buscar os sons de interesse nessas milhares de horas gravadas. São dados que ocupam muito espaço, um HD de um terabyte por vezes não basta nem para um único projeto. Hoje, nós podemos criar um algoritmo de reconhecimento que destaca só o que é necessário dentro de todos esses dados”.

Animais falam?

Falar sobre linguagem e em animais ainda é polêmico. Entre os cientistas, existe um longo debate acerca das definições do conceito de linguagem, e se é possível, com as evidências atuais, enquadrar os comportamentos animais e suas organizações como uma linguagem similar aos moldes humanos. “Existem espécies que vivem em ambientes sociais muito complexos. Por exemplo, os quatis são um grupo de estrutura matriarcal, você pode ter uma fêmea alfa, mas é uma sociedade mais igualitária. Outros animais se organizam de forma hierarquizada, com várias posições diferentes de autoridade e não apenas a figura do alfa. Nesse sentido, quanto mais complexa for a sociedade, maior é o número de vocalizações emitidas por aquela espécie. Esses sons são usados para modular as relações sociais. Se você faz uma comparação com a linguagem humana, essas espécies têm unidades sonoras, que estão sendo catalogadas por nós, são notas de tipos diferentes e que podem ser postas juntas para formar sentidos complexos, como se fossem fonemas se juntando para formar uma palavra, assim como nós humanos. Mas isso ainda é bastante polemizado”, esclarece Patrícia.

“Quem não é da área da bioacústica resiste muito a essas equivalências, principalmente os que se dedicam ao estudo da linguagem humana. No entanto, se tratando de evolução, é importante levar em conta que os processos são longos. Podemos considerar que os animais podem ter uma protolinguagem, ou seja, meios de comunicação mais simples. Então, não queremos dizer que as capivaras e quatis, por exemplo, falam como um humano, uma linguagem tão complexa quanto a nossa ainda não foi encontrada. Uma complexidade linguística dos humanos que ainda não foi atestada em outras espécies, por exemplo, é a recursividade, que seria falar sobre coisas que não estão presentes no ambiente em que estamos. Mas o fato é que eles têm uma organização em suas vocalizações, em experimentos de playback você consegue atestar aspectos semânticos desses sons. De fato, as vocalizações produzem reações diferentes nos animais. São montadas como se fossem legos, eles usam uma peça sozinha, mas podem usá-las em conjunto e cada combinação tem um significado “, detalha.

“Um professor que hoje está na UNB, Francisco Dionísio Mendes, junto com um professor colaborador, que era justamente da área linguística, Didier Demolin, mostrou que os muriquis, os maiores primatas do Brasil, também fazem essas combinações acústicas, e que você consegue prever a sequência de fonemas que eles usam. Isso mostra que essas unidades sonoras não são aleatórias. Então, estatisticamente, você consegue prever qual é a provável próxima unidade de som, a próxima peça de lego que ele vai usar. Existem regras que a gente poderia fazer uma analogia com as nossas regras gramaticais, mas de uma forma muito mais simples”, exemplifica.

Sociedade e cultura

Tratando-se de cultura, o cenário entre os pesquisadores segue semelhante. Para Patrícia, a conclusão sobre a existência ou não de cultura entre animais está ligada à definição conceitual adotada por quem analisa o tema. “Eu não tenho dúvidas de que há cultura entre os animais. No entanto, isso depende da definição adotada acerca do que é cultura. Mas, para mim, a cultura se trata de algo que surge em um grupo, vem de uma herança, se perpetua em forma de tradição, os animais aprendem observando os outros e o conhecimento é transmitido ao longo das gerações. Tem estudos sobre chimpanzés que mostram populações diferentes em uma espécie de árvore filogenética, indicando onde surgiram diversos comportamentos, como o uso de ferramentas. Alguns chimpanzés produzem uma varinha de pesca de cupim: eles pegam um galho, tiram as folhas do galho, esse galho é sempre bem característico para cumprir bem a função, e eles enfiam o galho nos cupinzeiros. Os cupins atacam essa madeira e, quando ele tira o galho, ele passa na boca e tem uma bela refeição proteica. Outros usam folhas como se fossem esponjas para captar água. Algumas outras populações quebram coco usando duas pedras, uma servindo de bigorna e outra de martelo. São hábitos que surgem naquela população específica e que sobrevivem ao longo do tempo, passando de geração para geração. Isso define uma cultura”, disserta.

“Historicamente, o ser humano tem uma resistência de admitir que os outros animais podem ser semelhantes a nós em qualquer aspecto, é algo muito antigo. Tendemos a acreditar que somos algo incrível e que ninguém consegue nos igualar. Todos os outros animais são coisas mais simples, são máquinas. Acho que talvez até precise existir essa grande diferenciação entre animais humanos e não humanos, pois nós usamos as outras espécies. Quantas vezes a gente não ouve falar que a galinha existe para nos dar ovos, que a vaca existe para nos dar leite? Mas veja, se a população soubesse como um filhote de vaca sofre ao ser separado da mãe, assim como um bebê humano, que o sistema de vinculação afetiva do bezerro e do bebê humano é extremamente semelhante, talvez a gente deixasse de consumir leite, ou pelo menos mudaríamos a forma de produzir. Existem muitas semelhanças entre nós e os outros animais, em tudo que você possa dizer”, finaliza.

Fonte: Jornal USP

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