Quando trago assuntos aqui na coluna Segunda Chance, além de abordar as experiências do Instituto Libio na jornada para soltura de animais silvestres, também considero rico e inspirador destacar o que outras instituições estão realizando. São trabalhos fundamentais e significativos, como solturas, que mostram resultados positivos para a conservação e podem ajudar a iluminar possibilidades de atuação na busca do retorno à vida livre de tantos espécimes.
Tive a oportunidade de conhecer mais o trabalho realizado pelo Instituto Pró-Silvestre (IPS), organização da sociedade civil que trabalha no resgate, manejo, reabilitação, destinação, pesquisa e conservação da fauna silvestre. Ela atua no estado do Ceará, com sede na capital, Fortaleza, onde desenvolve a maior parte do seu trabalho.
Cada espécie possui complexidade e desafios para a soltura, mas gostaria de destacar os macacos-prego. Eles são frequentemente alvo do tráfico e, muitas vezes, acabam em centros de triagem e mantenedores sem perspectiva de soltura.
Macaco-prego no cenário do tráfico de fauna
Hoje, no mantenedor de fauna do Instituto Libio, 30% do plantel é constituído por macacos-prego. A maior parte desses animais apresenta comportamentos muito próximos aos humanos, o que sempre é um fator decisivo para a promoção de sua soltura. Saber que há instituições que têm conseguido realizar solturas é muito relevante.
Infelizmente, muitas instituições do terceiro setor ainda trabalham de forma isolada, apesar dos esforços incríveis que realizam. Essa desconexão não ocorre por falta de vontade, mas porque ainda não existe um movimento estruturado que incentive trocas mais ativas entre elas. Criar um espaço onde instituições possam se apoiar mutuamente seria muito positivo.
Na conversa com a conselheira e co-fundadora do Instituto Pró-Silvestre, a advogada Karine Montenegro, surgiu a ideia de promover um encontro específico para fortalecer essa rede, algo que espero ver concretizado em breve.
O trabalho de reabilitação, destinação e soltura tem uma série de complicações e dificuldades. No entanto, estratégias bem pensadas, com a contribuição de diversos atores, tornam possível o seu sucesso. Para isso, convidei o IPS para nos contar um pouco do seu trabalho e como dentro do Ceará tudo isso foi construído.
Tatiane Rech – Quais são os principais desafios que o Instituto Pró-Silvestre enfrenta ao realizar a soltura de animais silvestres?
Karine Montenegro – Nas solturas realizadas pelo Instituto Pró-Silvestre, nossos maiores desafios são a proteção da área de soltura contra a apanha e caça de animais silvestres, a conscientização da comunidade local da região de soltura e dar garantia às espécies que serão soltas de recurso natural e hídrico na localidade.
Tatiane Rech – Como funciona o processo de escolha das Áreas de Soltura de Animais Silvestres (Asas) no Estado e qual a importância dessas áreas para a reintrodução de fauna?
Karine Montenegro – Para cadastrar uma área de soltura como Áreas de Soltura de Animais Silvestres (Asas) é necessário solicitar junto ao órgão ambiental (no caso, sempre fazemos com o Ibama) o cadastro da área como eletiva à soltura de silvestres. Após tal solicitação, o Ibama vai até a área, realiza um mapeamento junto ao Instituto Pró-Silvestre e, em posse de todos os dados existentes na localidade, o Ibama cadastra a área como sendo Asas.
Escolhemos a área a partir do mapeamento que fazemos, coletando informações e dados sobre as espécies de ocorrência na região, assim como fazendo articulação com donos de terras, os quais possam oferecer suas propriedades para gestão de fauna do IPS.
Tatiane Rech – Vocês têm recebido algum tipo de apoio ou colaboração do Estado para a realização das solturas? Como esse apoio contribui para a eficácia das reintroduções?
Karine Montenegro – Em grande parte das solturas, o Instituto Pró-Silvestre recebe apoio dos órgãos ambientais no ato de translocar os animais silvestres às áreas de soltura e, esporadicamente, em algum manejo específico. É um apoio importante pois, em regra, os órgãos possuem várias viaturas disponíveis para a translocação dos animais, bem como caixas-transporte. Os exames pré-soltura para macacos-prego, em sua maior parte, são custeados pelo Ibama. Atualmente, o Ibama tem uma parceria com a Universidade Federal do Piauí (UFPI). Os exames são realizados no Núcleo de Estudos, Produção e Preservação de Animais Silvestres (Nepas). Estamos em contato com o Laboratório Central de Saúde Pública do Ceará (Lacen-CE) para ver a possibilidade de um fluxo de exames para serem realizados por eles.
Tatiane Rech – Você poderia compartilhar um caso específico de soltura bem-sucedida de macacos-prego realizado pelo Instituto Pró-Silvestre e os principais fatores que garantiram seu sucesso?
Karine Montenegro – Os termos “bem-sucedida” ou “sucesso” envolvem muitas variáveis, uma vez que a espécie em questão (macaco-prego) é extremamente dotada de diversos comportamentos, muitas vezes imprevisíveis, tais como, algumas vezes, se dissiparem do bando após serem soltos ou adentrarem em alguma residência de moradores que possuam casas próximas à área florestal. O que podemos dizer é que, sem dúvida, a existência de recintos pré-soltura (aclimatação) na área de soltura em que macacos-prego serão soltos é indispensável, uma vez que esses primatas, no momento em que estão nos recintos de aclimatação, ganham a oportunidade de se ambientar com as especificidades da área, bem como de se socializarem com outros macacos-prego que possam habitar o entorno.
Outro fator importante é garantir que na área de soltura haja recurso hídrico e alimentar para tais espécies conseguirem sobreviver após a soltura. No caso dos macacos-prego, costumamos construir lagos artificiais na área de soltura para eles se dessedentarem após a soltura. Algumas vezes fazemos plantio de mudas nativas da região as quais servirão como recurso alimentar dos mesmos, Nos primeiros meses após a soltura, também costumamos ofertar alimentos em plataformas que construímos dentro da área de soltura para dar-lhes um reforço até se ambientarem à natureza por completo.
E um terceiro fator, o qual se iguala na importância aos demais, é a profunda e extensa educação ambiental que fazemos na região. Em toda soltura de animal silvestre com potencial impacto na comunidade, como a dos macacos-prego, nós do Instituto Pró-Silvestre realizamos uma extensa expedição a qual denominamos de “Expedição Vida Silvestre”. A expedição dura aproximadamente três meses e vários membros do IPS permanecem em imersão na comunidade local, realizando educação ambiental em escolas de ensino fundamental, ensino médio e associações de moradores. Também distribuímos números de contato do Instituto e seus parceiros, além de divulgá-los em placas informativas em lugares estratégicos da região; fazemos parcerias e capacitamos as secretarias ambientais da região, polícias, bombeiros, entre outros atores locais.
Além disso, há o trabalho de instalação de Brigadas Florestais voluntárias com moradores da região, que recebem treinamento para saberem agir no combate aos focos de incêndios florestais da região. A intenção é, literalmente, formar um “cordão” de conscientização, de interligação e de suporte à fauna silvestre que será solta na localidade.
Entretanto, é importante destacar que, mesmo com todos os inúmeros cuidados realizados numa soltura de macaco-prego, é comum que pelo menos um dos macacos do bando solto não se adapte à natureza ou se afaste do bando que estava, a ponto de adentrar residências de moradores da região e lá permanecer. Nesses casos, precisamos realizar a recaptura do animal para retorná-lo à reabilitação com outro bando ou até mesmo para analisar se o mesmo ainda será apto para uma próxima soltura.
Em síntese, o que podemos dizer é que nas solturas realizadas pelo Instituto Pró-Silvestre (com o apoio dos órgãos ambientais), nós nos cercamos de todos os cuidados necessários para que os indivíduos consigam se reinserir na natureza da maneira menos impactante possível. Até o momento, das duas solturas de macacos-prego que realizamos, apenas um indivíduo de cada soltura precisou ser recapturado por nós. Desse modo, o fato de nos esforçarmos para devolver o espécime ao hábitat, bem como o fato de agirmos no afã de combater o tráfico de animais silvestres, além do fato de fazermos uma profunda conscientização ambiental na comunidade da região, são o suficiente para nos produzir um sentimento de êxito em tais iniciativas.
Tatiane Rech – Como monitoram os resultados das reintroduções?
Karine Montenegro – Geralmente fazemos em três modalidades: com a instalação de câmeras trap na área de soltura; com a frequência de monitores membros do IPS na localidade de soltura; e, por fim, com a aplicação da ciência-cidadã, que corresponde ao retorno de informações que temos da comunidade da região após nossa Expedição Vida Silvestre na localidade, uma vez que passam a entrar em contato conosco corriqueiramente quando do aparecimento de silvestres.
Tatiane Rech – Quais são as principais oportunidades que o Instituto Pró-Silvestre têm identificado para expandir ou melhorar as solturas de fauna no Estado? Existe algum plano de ação futuro nesse sentido?
Karine Montenegro – Uma das grandes oportunidades que o IPS vem identificando no Estado é o lançamento, por parte do poder público, de editais, fundos de financiamentos, conversão de multas ambientais ou instrumentos semelhantes, os quais possibilitem com que organizações da sociedade civil, como o Instituto Pró-Silvestre, possam alcançar suporte cada vez mais sólido para uma eficaz conservação da fauna silvestre cearense.
Nosso plano de ação atual é beneficiar ao máximo todas as áreas de solturas de gestão do IPS, bem como multiplicar o número delas e de nossas Expedições Vida Silvestre (dentro do Estado do Ceará e, quem sabe, para além dele também). Sem medo de errar, nossas expedições têm sido um divisor de águas na conservação da fauna silvestre em todo o Estado cearense. Desconheço outra expedição, com a abrangência que fazemos e com os setores que atingimos, que possua esse alcance.
Depois de cadastrada a Asas do IPS, fazemos a Expedição seguindo os passos abaixo:
- Articulação e capacitação de órgãos ambientais e de segurança pública da região.
- Educação ambiental para o ensino fundamental, o ensino médio e associação de moradores.
- Instalação de brigada florestal na região (capacitação de moradores para serem brigadistas voluntários; tentativa de conseguir equipamentos para os brigadistas).
- Soltura de animais silvestres (instalação de recinto pré-soltura; monitoramento de espécimes soltos; construção de recurso hídrico nas áreas de soltura).
Fonte: Fauna News