Por Ana Cardilho
em colaboração para a ANDA
Durante um mês uma cachorrinha vagou pelas ruas de Taboão da Serra com uma ferida aberta em seu dorso, provavelmente causada pela mordida de outro cachorro. Resgatada por duas protetoras, ela foi levada ao veterinário onde ficou internada para receber os cuidados necessários. Ela já está bem e agora precisa encontrar um lar que dê muito amor e carinho. É dócil e está muito carente. Ela é adulta, SRD e está esperando por você.
Eu já tive casa, comida e até um tapetinho só meu. Pensa que nasci na rua? Não, senhor. Onde exatamente nasci não sei dizer, mas desde que me dei conta de que poderia latir, vivi em uma casa com uma família que nunca deixou faltar comida quente e água fresca em minhas tigelas.
A vida era boa, sem problemas. De manhã, eu latia para o carteiro, o verdureiro, o rapaz que vendia detergente, e fazia festa com as crianças que passavam pelo portão na hora da escola. Depois do almoço, um bom sono, que ninguém é de ferro. No final da tarde, mais festas com as crianças que voltavam da escola e eu me preparava para receber com muitos latidos e lambidas meus donos que retornavam do trabalho.
Até um dia em que eu não entendi nada. Sabe maldade pura? Uns moleques pularam o portão e me pegaram. Claro que eu tive vontade de reagir, morder… mas eles foram tão rápidos que não consegui nada além de me debater dentro de um saco de estopa.
Esses meninos não tinham o que fazer. Eram sem coração. Pelo tempo que passou, percebi que estava sendo levada para bem longe de casa.
Por uns dias fiquei num terreno onde havia uma casa demolida. Acho que eles me roubaram e depois se deram conta de que não tinham o que fazer comigo. Um deles, o menos perverso, durante três dias, levou-me pão e água. Depois sumiu.
Quando consegui fugi, claro. Mas, na rua, olhava para um lado e para o outro, tentava identificar no ar algum cheiro conhecido que pudesse me conduzir de volta para casa e nada!
Andei a esmo. Bebi água de esgoto, comi restos de lixo e dormi em cantinhos onde pudesse me sentir um pouco mais protegida.
A solidão é esmagadora. Sem endereço, sem meus donos, sem minha rotina, eu não sabia o que fazer, para onde ir, e muito menos qual o sentido de tudo aquilo. Passei muitas noites imaginando meus donos andando pelo bairro, perguntando se alguém havia me visto andando ao acaso. Talvez eles tenham espalhado cartazes com fotos minhas pelo comércio do bairro. Os vizinhos me conheciam, mas quando fui roubada ninguém viu. Acho que meus donos me procuraram bastante, mas a esta altura devem ter desistido.
Pelos cheiros que chegam no ar e pela minha intuição, sei que estou muito longe de casa.
Outro dia, tentando ganhar alguma comida na porta de um bar, levei a pior. Um sujeito agressivo bateu com uma vassoura em minhas costas e ainda levei umas mordidas do cachorro dele.
Corri até não poder mais e fiquei bem ferida. Isso só piorou minha situação. Se antes eu era uma vira-lata perdida, sem lenço e sem documento, agora eu era uma vira-lata machucada e com uma aparência assustadora.
Até que tudo mudou. Já tinha ouvido falar que anjos existem. Hoje tenho certeza. Existem mesmo. Fui recolhida por duas protetoras de animais. Elas me levaram a um veterinário que tratou minhas feridas, acabou com minhas pulgas e reconheceu o quanto eu estava magra e enfraquecida com esse período de morar na rua.
Sinto-me bem melhor. Eu sei que não vou voltar para casa. Mas tenho esperança de ter outro lar. Quem sabe alguém olhe bem dentro dos meus olhos e descubra o quanto posso ser carinhosa, companheira, amiga, leal e se apaixone por mim, hein?!
Já que existem anjos, milagres devem existir também…
Ana Cardilho é escritora e jornalista. Com um olho na realidade e outro na prosa imaginária conta com mais de 20 anos de experiência em rádio e TV, tendo feito reportagens, edição e fechamento de telejornais e programas, e é ficcionista.