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Uma década do livro “Amigo Animal” - e fim de um projeto de 15 anos

23 de dezembro de 2014
Paula Brügger
8 min. de leitura
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Dia desses um amigo comentou que viu uma citação minha no Facebook de uma colega de trabalho dele. Como não tenho “Face”, pedi que ele me transcrevesse a citação pois fiquei curiosa sobre a sua origem.
A citação era de meu livro “Amigo Animal  – reflexões interdisciplinares sobre educação e meio ambiente: animais, ética, dieta, saúde, paradigmas”, de 2004.
Naquele momento, me dei conta de que uma década havia se passado!
Inicialmente a proposta do livro era servir como suporte para um projeto pedagógico de mesmo nome que começara no ano 2000, numa parceria entre o Deptº de Ecologia e Zoologia/UFSC e a extinta ONG “Sociedade Animal”.  Mas, durante a sua “escritura”, o escopo para o qual havia sido pensado cresceu sobremaneira. À medida em que mergulhava na temática escolhida percebia que, para cada parágrafo escrito, emergiam incontáveis veredas paralelas inextricavelmente ligadas entre si. Esse eterno desenovelar é próprio do pensamento holístico e interdisciplinar, proposto no livro, e único caminho para uma abordagem não-fragmentária da  problemática ambiental.
Como o título do livro sugere, seu objetivo geral foi discutir os fundamentos éticos que alicerçam a relação entre nós – animais humanos – e os “outros animais” numa perspectiva sistêmica e ecológica, identificando também alguns elementos históricos, econômicos, sociais e políticos subjacentes à temática, a fim de ultrapassar a perspectiva meramente naturalista dominante. A discussão se desenvolveu em torno de três eixos: animais de rua; uso de animais na alimentação; e uso de animais no ensino e na pesquisa. Esses temas geradores foram, assim, o fio condutor de um debate interdisciplinar acerca da nossa relação de supremacia absoluta sobre os animais não humanos – esses “outros nós” –, como relação sociedade-natureza.
O primeiro tema discutido é sem dúvida o principal foco de atuação da maior parte das ONGs que têm como objetivo a chamada “proteção animal” e se refere a um problema cuja solução é razoavelmente consensual. Embora esse tema seja mais visível – pois os animais maltratados, abandonados ou explorados em vias públicas sofrem diante de nossos olhos – ele é apenas a “ponta do iceberg”, quando se trata da relação entre nós e eles.
Já o segundo e o terceiro temas envolvem questões polêmicas e muito menos evidentes.  Sua abordagem é, entretanto, fundamental para uma visão mais ampla da nossa relação com os outros animais, sobretudo para os não-iniciados na causa animal. Ambos abrangem conteúdos que, embora pouco debatidos cotidianamente, encontram-se diretamente relacionados a muitas atividades e processos produtivos que envolvem o meio acadêmico e a sociedade em geral. Isso torna esse debate imprescindível para a construção de uma sociedade sustentável também no plano ético, uma dimensão alijada da própria ciência dominante.
Ao discorrer sobre os animais usados na alimentação humana procurei mostrar algo que, felizmente, se tornou fartamente documentado nesses últimos dez anos: a estreita relação entre essa dieta e diversos problemas como o sofrimento físico e psíquico dos animais, doenças humanas; injustiças sociais; e impactos negativos sobre os recursos naturais e a biodiversidade, entre outros.
Entretanto a contribuição mais significativa do livro foi aprofundar, no terceiro tema, as causas do fracasso da experimentação animal sob o ponto de vista ético e científico. Essa questão foi abordada fazendo dialogar as premissas básicas da visão sistêmica – presentes sobretudo em “A teia da vida”, de Fritjof Capra – e os processos tanto biológicos quanto sociais, culturais, históricos, etc, que envolvem pesquisas, orientações pedagógicas e políticas públicas em saúde (planetária e individual), mostrando o quanto a experimentação animal – ou vivissecção – é uma prática extremamente reducionista, no seio da qual se perpetuam visões de doença e saúde igualmente reducionistas.
O segundo e o terceiro temas envolvem, portanto, questões que estabelecem um diálogo tenso com diversos valores dominantes em nossa sociedade. E tais questões não podem ser tratadas à luz das perspectivas educativas tradicionais, baseadas numa visão de mundo mecanicista e essencialmente consensual, o que as torna epistemologicamente pobres. Não será possível mudar visões de mundo e educar de forma crítica – ou genuinamente “ambiental” – sem promover rupturas e sem incorporar a dimensão do conflito, seja de valores, seja de interesses, etc.
E o projeto “Amigo Animal” comentado antes?
O projeto, que teve início em 2000, começou sua trajetória em escolas de primeiro e segundo graus, sendo apresentado sob a forma de cartilha virtual (34 transparências) com um posterior debate. No caso de turmas com crianças de idade mais tenra, apenas o primeiro eixo era apresentado e, no lugar de debates, as crianças elaboravam desenhos de livre escolha sobre a temática em questão.
Apesar de haver sido oficialmente aprovado por duas secretarias de educação – a estadual de Santa Catarina e a municipal de Florianópolis – apenas o primeiro tema decolou.
Isso já era de certa forma esperado, dada a natureza das temáticas dois e três. Ainda assim – e contemplando apenas o primeiro eixo – o projeto teve que esperar pela criação da Coordenadoria do Bem Estar Animal, da Prefeitura Municipal de Florianópolis (PMF) [1], para que se consolidasse de forma interinstitucional. Antes disso eu havia conseguido recursos junto à Universidade Federal de Santa Catarina para viabilizar a publicação do livro e a elaboração de materiais instrucionais – como banners e livretos explicativos sobre o projeto – que foram distribuídos para a maior parte das escolas das redes municipal e estadual como parte integrante de um amplo projeto de formação. A partir da citada parceria com a PMF, mais adiante, foi elaborada também uma cartilha relativa ao conteúdo do primeiro eixo do projeto. Esse material instrucional, que visava ao reforço daquele conteúdo programático, seria distribuído para cada criança que participasse do projeto. Com isso teríamos mais um potencial aliado: o papel multiplicador de cada criança em seu círculo familiar, bairro, etc. Foram impressos 10.000 exemplares da cartilha, cujo lançamento oficial foi no dia 07 de junho de 2006, na escola Osmar Cunha, em Canasvieiras, Florianópolis [2]. A então coordenadoria, atual diretoria do Bem Estar Animal, disponibilizou também um funcionário e uma voluntária para o projeto.
A partir daquele momento o projeto Amigo Animal teve a honra de fazer parte de um programa maior que reunia os três pilares básicos para uma genuína solução para os chamados “animais de rua”: castração, educação e doação [3]. Durante alguns anos essa pareceria andou de vento em popa, fazendo com que o Bem Estar Animal em Florianópolis servisse, inclusive, como modelo e inspiração para a implementação de projetos semelhantes em outros estados.
Durante esses anos confesso que muito lamentei o fato de apenas o primeiro eixo ter despertado algum interesse por parte dos educadores das escolas por onde o projeto passou. De qualquer forma, nem tudo foram flores. Fui diversas vezes alvo de críticas de professor@s e coordenador@s que consideravam uma perda de tempo tratar da nossa relação com os animais num contexto no qual tinham que lidar com problemas como uso de drogas, violência e gravidez na adolescência.  De fato, diversas escolas jamais nos concederam espaço. Embora eu não tenha insistido em promover o projeto em tais casos, sempre tive a intuição (e ainda tenho) de que esses problemas, aparentemente tão distantes, compartilham causas semelhantes em suas raízes. Tanto no temário do projeto, quanto nos problemas que aconteciam nas escolas, era possível traçar elementos comuns tais como formas de discriminação, violência e falta de altruísmo, por exemplo. Continuo acreditando que a reflexão sobre um determinado problema pode ajudar a solucionar outro(s). Mas minha forma de pensar nunca foi muito persuasiva aos olhos de tais educador@s.
Enfim, considerando o background especista que marca a nossa cultura, preferi privilegiar o lado positivo do empreendimento, em vez de encafifar com a questão.
Mas, como “tudo o que é sólido desmancha no ar”, o projeto foi encerrado no segundo semestre de 2014. Devido a uma mudança de gestão na PMF (e na diretoria do “Bem Estar Animal”), fui informada, em meados de 2013, que o funcionário responsável pelo projeto “Amigo Animal” fora transferido daquele setor e que não haveria outro para assumir suas funções. O funcionário em questão tinha as incumbências de realizar contatos, agendar as visitas das escolas e recebê-las, tendo recebido para isso treinamento qualificado. Também cabia a ele zelar pelo material instrucional do projeto (cartilhas entregues às crianças). Depois de sua saída tive que assumir as funções do funcionário, fato que dificultou sobremaneira a continuidade do projeto [4]. Devido a esses e outros percalços, o projeto passou a receber uma quantidade muito menor de visitas e entrou em franco declínio, até parar neste segundo semestre.
Essa foi, de forma muito resumida, a trajetória do projeto.
Durante esse tempo de mais de uma década, muitas coisas aconteceram. Houve um expressivo florescimento de publicações acerca da senciência animal, dos inequívocos impactos negativos das dietas cárnicas na natureza, e sobre o caráter antiético e anti-científico da experimentação animal.
No mundo vivido, porém, as coisas andam a passos mais lentos. E, mesmo na chamada era do conhecimento, é comum que dados e informações imprescindíveis para a manutenção da odisséia da vida se percam como “lágrimas na chuva” [5].
Assim como não existe linearidade histórica, ou homogeneidade nos avanços em diversas áreas do conhecimento, talvez seja possível que esse hiato entre teoria e prática se desfaça. Que venham as mudanças.
Notas:
[1]: Atual “Diretoria do Bem Estar Animal” (DIBEA)
[2]: Houve posteriormente uma segunda edição da cartilha “Amigo Animal”. Sua elaboração foi feita a partir de uma ampla revisão da primeira edição, incorporando feedbacks de professores e alunos.
[3]: Outro projeto digno de nota junto ao canil da PMF/ DIBEA é  o “Cão Terapia”. Visite: http://www.obafloripa.org/projetos.php
[4]: Após a saída do referido funcionário, as cartilhas estocadas na DIBEA já não se encontravam bem acondicionadas (muitas estavam coladas umas às outras, possivelmente devido à estocagem em local úmido).
[5]: Essa foi uma das frases do trecho final do filme Blade Runner, dirigido por Ridley Scott, de 1982.

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