Falácias ou: Como aprendi a me despreocupar e fugir do debate
Vamos começar a segunda parte consultando o Oráculo, o Dicionário Houaiss, para definir o que é uma falácia. Diz aquele que tudo vê e tudo sabe:
Falácia
- qualidade do que é falaz; falsidade
Ex.: sua afirmação é uma f. - Rubrica: filosofia.
no aristotelismo, qualquer enunciado ou raciocínio falso que entretanto simula a veracidade; sofisma
Existem vários tipos de falácias, com maior ou menor grau de sofisticação, e mesmo o mais arguto e honesto debatedor pode esbarrar em uma delas, de vez em quando. Aqui o que importa, porém, são dois dos tipos mais básicos e mais baixos e mais comuns. Trata-se do emprego de palavras sem critério, sem nenhuma reflexão histórico-conceitual, simplesmente porque adquiriram valor pejorativo. Um modo fácil de desqualificar a posição ou pessoa de quem se discorda. Isso nos leva a dois tipos de falácia. Primeiro, um grande hit nas paradas de sucesso: o argumentum ad hominem. É quando você ataca a integridade pessoal do interlocutor, e não a validade das ideias que este propõe. O amplo uso da palavra “fascista” é um exemplo típico (embora pouco admitido) de argumentum ad hominem. Ou isto, ou eu sou psicótico e não percebi que ainda estamos na década de 1940. Tudo que seja ou pareça de direita, ou seja, ou pareça autoritário é rápida e maliciosamente classificado de fascista, livrando assim a pessoa que o profere do fardo de argumentar.
O segundo tipo, outro clássico, geralmente associado ao primeiro, é a não menos estimada falácia do espantalho. Funciona da seguinte forma: um cientista pega uma pesquisa malfeita, com uma metodologia pobre, hipóteses mal construídas e conclusões falsas. O adversário grita: POSITIVISTA! Todos saem correndo da ameaça temida do cientificismo do século XIX e a pesquisa ganha ampla divulgação nas mídias e nas publicações pós-modernas, onde tudo é discurso e interpretação. Da mesma forma, nos debates “intelectuais” sobre política, filosofia e movimentos sociais, onde o pós-modernismo sufoca o pensamento crítico e inteligente (conceitos que, aliás, devem ser “desconstruídos”), qualquer manifestação contrária ao senso comum gera berros de ELITISMO! e FASCISMO! O espantalho está armado e todos os pássaros que se reuniram para a refeição saem voando da ameaça maligna – na verdade, apenas um engodo de palha.
Da mesma forma, discordar de determinado movimento pode, dependendo do interlocutor, automaticamente te transformar em machista, racista, antissemita ou assemelhados. Outra palavra, esta particularmente usada contra os veganos e entre os veganos é elitista. Como tais insultos são facilmente digeríveis pela massa e aviltantes a quem os recebe, num ambiente de debate, eles se prestam bem para o silenciamento, ou dar ao autor do insulto uma aura de nobreza, coragem e dignidade, e a seus simpatizantes a impressão de o debate ter sido vencido, e a ameaça, neutralizada. É o equivalente a um lutador que vence uma disputa com golpes abaixo da cintura e sai depois alardeando ser um grande esportista que joga limpo. Deveria ser nauseante, mas é popular, recorrente e eficaz.
Vamos fazer uma pausa, respirar fundo e refletir sobre o que significam alguns desses termos, antes de usá-los de maneira leviana (i)?
Elitismo: definição e primeiras considerações
O elitismo, segundo o Oráculo, é um “sistema social, político etc. que privilegie a elite, em detrimento dos demais membros da sociedade.” Mas calma lá. Um dicionário idiomático não é um dicionário de filosofia política. Será tão simples assim?
Consultando um manual especializado, encontrei a seguinte definição de elitismo político: “Elitismo, com sua ancestralidade platônica, é talvez a mais velha ideologia política. […]. Ele sustenta que a melhor elite é a intelectual, composta por aqueles que são particularmente qualificados pelas habilidades e treinamento para compreender os mecanismos da sociedade” (Quinton, 2007: 287).
Contrariamente à visão reducionista empregada nos debates interseccionais, de forma insultuosa e falaciosa, o elitismo tem diferentes versões e orientações políticas. A República, de Platão, é seu paradigma. Nela, uma casta superior – os reis-filósofos – dirige a sociedade, estratificada em mais duas castas – os guardiões e auxiliares (que nós hoje chamaríamos de militares e burocratas) – e a casta inferior, dos artesãos e trabalhadores. A elite dirigente de Platão é benevolente: trabalha em função do bem de todos e da unidade da cidade. De fato, A República apresenta características bem radicais para seu tempo, como a severa restrição da propriedade privada como meio de abolir a pobreza e a igualdade entre homens e mulheres no acesso à educação e às funções superiores. Por isso, Platão foi identificado – erroneamente – como um dos pais do socialismo. Há diferenças fundamentais entre o pensamento do filósofo grego e os socialistas. A meta de Platão era preservar, e não romper, com a ordem social e a hierarquia política. A estratificação social é rígida e, ainda que benevolente, uma elite é sempre uma elite. O poder está concentrado nas suas mãos, e nenhuma alternativa está disponível aos governados – de fato, Platão divisa formas que nós hoje conhecemos como manipulação e propaganda, tão comuns nos regimes totalitários, e também nas democracias modernas, para “convencer” (o termo mais preciso seria ludibriar) o povo a aceitar o domínio dos reis-filósofos (ii).
Outra forma de elitismo é o nosso (de muitos) querido marxismo-leninismo, tanto pela sua forma de organização partidária quanto, depois, pela organização política dos Estados criados por seus adeptos. Ele tem por objetivo abolir a propriedade privada dos meios de produção, romper com a ordem social e o capitalismo e – idealmente – levar ao fim da sociedade de classes, das hierarquias, da divisão de trabalho e do Estado. Objetivos bem diferentes de Platão, portanto. Porém, a estratégia elaborada por Lenin para realizar a revolução concebida por Marx exacerbou suas características autoritárias e vanguardistas, o que levou às comparações com a República de Platão. Com uma diferença: em vez do engano, a ordem social é mantida pela violência. No caso do marxismo-leninismo, e da forma que ele tomou na União Soviética e outros países, há uma elite partidária que forma a classe dirigente e dita como a sociedade deve funcionar, quais serão as leis e até como deve se portar o cidadão. Têm abaixo de si os burocratas, a ferramenta para cumprir seus ditames e controlar e “orientar” os cidadãos. E, invariavelmente, uma polícia política para vigiar, reportar e punir toda forma de contrarrevolução – seja reclamar do preço do pão ou da falta de comida, ler ou reproduzir livros proibidos, criticar ou se opor ao governo. É assim que o povo, ou proletariado, que supostamente deveria ser libertado, permanece na base da pirâmide, e, na prática, é um prisioneiro do Estado. Ele deve ser “educado” para o socialismo, e os casos resistentes devem ser contidos – frequentemente em campos de concentração – para evitar o contágio. Uma bala na cabeça resolveria os casos mais graves. O proletário deixa de ser sujeito da revolução e da própria liberdade. Ele é apenas uma ovelha para os pastores do partido. E o que é pior: esse modelo organizacional político-estratégico, responsável por milhões de mortes – por meio de execuções, fomes, epidemias, migrações forçadas, más condições de vida nos campos de concentração – continua a ser seguido e defendido, não apenas nos Partidos Comunistas remanescentes, mas na mente de muitos intelectuais marxistas, e, de forma mais branda (ou menos óbvia) também em muitos movimentos sociais. Inclusive uma parcela significativa daqueles ativistas que acusam os veganos que lutam pelas pessoas não humanas de elitistas e opressores… Irônico?
Há outro caso ainda mais interessante de se mencionar e refletir. O elitismo não assume, necessariamente, um caráter ostensivamente explorador ou opressor. Ele nem sequer precisa ser o atributo de uma classe dominante. Pode ser uma política ou filosofia que só é acessível a uma parcela da sociedade – não necessariamente a mais poderosa ou abastada. Vejamos o filósofo grego Diógenes de Sínope. Ele advogava uma vida simples, em consonância com a natureza, voltada para o domínio de si mesmo. Por isso, desprezava a vida civil. Vivia nas ruas, a pedir esmolas. Afrontava a sociedade, violando suas normas sociais, de modo a demonstrar sua futilidade e ensinar sua filosofia na prática. Também desprezava qualquer tipo de vínculo social e de posse – tudo que possuía era uma lanterna e uma caneca. Estes, para ele, eram os meios de se alcançar a felicidade e a liberdade. Vejam bem: ele não foi forçado a se tornar mendigo, ele optou por sê-lo. Ele é até hoje admirado pelos seus ensinamentos (que não cabe aqui detalhar) e pelo seu exemplo. Mas pensemos: e se todos decidissem seguir Diógenes e viver segundo seu exemplo? Quem produziria os alimentos que ele consumia? Quem manteria vivo o ecossistema urbano que ele menosprezava, mas em última instância garantia sua sobrevivência? Como praticar o cultivo de si mesmo, ocupar-se de questões complexas como liberdade e felicidade interiores, quando as necessidades básicas estariam sob risco? Então, se a filosofia de Diógenes, o cinismo, fosse adotado por todos, a sociedade entraria em colapso e sua própria prática se perderia. Ou seja: ela é para poucos – um pensamento elitista. Da mesma forma, quando minorias demandam para si o privilégio de manter sua cultura, identidade e tradição em detrimento de outros seres, elas caem numa armadilha. Mesmo que não sejam a classe dominante, e aparentemente estejam apenas lutando contra o preconceito e pela liberdade, recaem em contradição, pois sua liberdade passa a se apoiar sobre a escravidão alheia. Ao mesmo tempo, elas incorrem no elitismo.
Há elitismo disfarçado também na insistência de grupos, moderados e radicais, em adotar uma estratégia única. Quanto menos segmentado e mais hierarquizado o movimento, mais elitista ele será, isto é fato – e serve para nós e para eles. Os interseccionais surfam nessa onda para desqualificar o veganismo. Eles não se conformam que haja veganos que não concordem – parcial ou integralmente – com suas ideias. Para eles, apenas a perspectiva deles é válida. Querem que os veganos abram milhares de exceções e abracem todo tipo de causa antes de poderem se dizer veganos e difundir o veganismo – nos termos dos interseccionais. Assim sendo, as tradições dos povos A ou B, os sacrifícios do povo C, a caça do povo D, a pesca do povo E, a criação de bodes, galináceos ou cabras do povo F, o dilaceramento de animais vivos por uma população carente – tudo isso está fora do horizonte discursivo e estratégico do veganismo interseccional. Quem discordar, além de opressor e elitista, será fascista, direitista inimigo do povo!
Será? Quem está sendo fascista aqui? Hora de encarar mais fundo o abismo.
Fascismo: definição e primeiras considerações
Talvez seja o momento de evocar a definição desse vergonhoso conceito, o fascismo. Vergonhoso o suficiente para servir automaticamente para inverter o ônus da prova num debate de ideias. Mas chega de falácias: vamos falar de fascismo com clareza e honestidade? Será que isto é possível?
Para começo de conversa, o apelo recorrente à mentira, manipulação e a desonestidade são táticas tipicamente fascistas. Veremos se as acusações de fascismo contra veganos abolicionistas têm um mínimo de veracidade e honestidade.
O sociólogo Michael Mann (2008) propõe cinco condições necessárias e suficientes para definir um movimento como fascista:
1) Nacionalismo. Não se trata apenas de amor à “pátria”, mas de concebê-la de forma “orgânica”, ou seja: a nação vale mais que os indivíduos que a constituem. Isso implica duas coisas: que os indivíduos devem submeter-se ao regime de Estado sem contestação, inclusive sacrificando-se por ele; segundo, os indivíduos devem se ajustar, novamente sem se queixar, à hierarquia social. Pois eles são como órgãos para um organismo vivo que os transcende: a nação. O que implica que o fascismo também é uma forma de elitismo. Mas a nação não se define apenas pelo povo, cultura, tradição e um espaço territorial. Ela se define também pelo que não é. Os fascistas possuíam “acentuada preocupação com seus ‘inimigos’, tanto no exterior quanto (particularmente) no país. Demonstravam baixíssima tolerância para com a diversidade étnica ou cultural, pois ela subverteria a unidade orgânica ou integral da nação” (Mann, 2008: 27).
2) Estatismo. O Estado representa a nação, e detém, no fascismo, um modelo organizacional próprio. Ele é necessariamente autoritário, fiel ao “princípio da liderança”, e tem uma proposta distinta de lidar com os conflitos sociais. O que nos leva ao próximo ponto.
3) Transcendência. Como dito, a nação é maior e mais importante que o indivíduo. O Estado, a liderança, deveriam unir as diferentes classes em torno de um objetivo comum, transcendente, que é a nação. E o fascismo tem sua própria forma de manejar os conflitos sociais, de modo a manter a coesão interna: a violência (iii).
4) Expurgos. Diz Mann (2008: 30): “Como eram vistos como ‘inimigos’, os adversários precisavam ser eliminados, sendo a nação expurgada de sua presença”. Entretanto, Mann faz uma distinção: a violência contra os inimigos políticos pode abrandar-se, na medida em que as identidades políticas são mutáveis, e os adversários são assimilados. A violência étnica, porém, tende a escalar-se, pois nesse caso a diferença é incontornável. É importante ressaltar esse ponto, pois as políticas de identidade pós-modernas, cada vez mais, pendem para essa exaltação de uma forma de identidade em oposição a outras, inconciliáveis, em função de relações de poder – reais ou imaginadas. Tudo que é diferente é, no mínimo, suspeito. Não há espaço para a individualidade – você é o que determina sua nacionalidade, idioma, gênero, etnia, etc. E, dependendo do caso, você pode ser apenas um “homem branco cis hétero”, destinado a ser opressor…
5) Paramilitarismo. Os fascistas organizavam-se militarmente para tomar o poder do Estado, combater e intimidar seus inimigos (ou reprimi-los e suprimi-los, uma vez no poder), e demonstrar sua força (iv). Outro objetivo importante dessa forma de organização era arregimentar seguidores junto à população. O fascismo é um movimento populista. Mas sua organização, como toda organização militar, é hierárquica. O paramilitarismo era “considerado ‘popular’, crescendo de forma espontânea de baixo para cima, mas também era elitista, supostamente representando a vanguarda da nação” (Mann, 2008: 31; ênfase minha). Além disso, ao criar um sentimento de “camaradagem”, ele reforçava o esperado nacionalismo orgânico entre seus membros.
Mann (2008: 26-7) resume esses cinco elementos fundamentais numa definição simples: O fascismo é a tentativa de construção de Estado-nação transcendente e expurgado por meio do paramilitarismo. Ela tem duas subdivisões básicas: uma ideológica (Estado-nação e transcendência do conflito social em prol da nação) e outra estratégica (expurgos e paramilitarismo).
Agora a pergunta: pode essa definição se aplicar ao veganismo? A resposta curta e grossa é: NÃO. Uma ideologia forma uma família de ideias e práticas assemelhadas. O veganismo não partilha nenhum dos cinco elementos básicos do fascismo.
Mas sejamos mais flexíveis na análise. É possível que um movimento não seja fascista, mas seja análogo ao fascismo, dependendo das semelhanças entre suas ideias e práticas, e interação entre elas. Um exemplo prático é o “fascismo ecológico” de que fala Tom Regan: um ambientalismo que cultua uma entidade superior, que tem uma função orgânica (a natureza, aqui, ocupando o lugar da nação) e que, ao menos em tese, sobrepõe-se à vida dos indivíduos e os reduz ao papel que eles desempenham no equilíbrio ambiental (que serve de analogia para a transcendência dos conflitos, a uniformidade social). Do ponto de vista ideológico, a analogia é perfeita. Só falta que este tipo de ambientalismo organize-se de forma militar e hierárquica, e adote a violência sistemática como estratégia para realizar seus objetivos. Neste caso, o conceito de fascismo ecológico seria rigorosamente justificável, do ponto de vista conceitual.
E o veganismo? Vamos refutar o mais fácil primeiro: não há qualquer semelhança entre os métodos de difusão do veganismo e os do fascismo. A maioria estrondosa do movimento usa de meios pacíficos e defende a não violência. Aqueles grupos que resgatam animais em diferentes países também não podem ser considerados, a rigor, violentos: não existe qualquer morte registrada numa ação de resgate de animais. E, mesmo que se possa ou queira classificar tais ações como violentas, elas não são do tipo fascista: não são do tipo militar. São atos de sabotagem, mais afeitas às táticas de guerrilha.
A transcendência de que fala Michael Mann não é exclusiva do fascismo, nem é, necessariamente, violenta ou conservadora. A transcendência pode ser entendida como a busca dos indivíduos por algo maior que eles mesmos – algo que os transcenda. É o que os leva a aderir às mais variadas religiões, ideologias, movimentos. A transcendência dos veganos jamais poderá ser comparada à do fascismo. Elas são diametralmente opostas. O veganismo busca a ruptura com a escravidão, as hierarquias, o especismo, a violência estrutural da humanidade. Seu compromisso é com a liberdade animal. Não fosse isso suficiente, há uma divergência ainda mais fundamental: enquanto o fascismo (como o ambientalismo) sobrepõe o todo (a nação, a natureza) sobre o indivíduo, o veganismo faz o contrário. Para ele, a pessoa individual, sua dignidade inerente, tem precedência sobre qualquer reclame de uma entidade ou coletividade. Nós lutamos pela liberdade de todos os animais, e não apenas alguns, e não condicionamos essa liberdade – não devemos, não podemos! – a quaisquer interesses, “da natureza” (v) ou de humanos. Sejam do Estado, sejam de minorias que querem manter seus privilégios em relação às pessoas não humanas. Neste ponto, gostaria de sintetizar a ideia através das palavras de uma não vegana, mas perfeitamente adaptáveis ao veganismo: “A vida começa e acaba com o homem, o indivíduo. Sem ele não há raça, humanidade, Estado. Nem mesmo sociedade. É o indivíduo que vive, respira e sofre” (Goldman, 2007: 34). O veganismo é, por definição, uma filosofia INDIVIDUALISTA.
E assim como o Estado, também a natureza não vive, respira ou sofre. Nem tampouco nenhum grupamento, humano ou não humano. Podemos ser discriminados pela nossa etnia, gênero, nacionalidade, religião, ideologia. Frequentemente o somos. Mas etnia, gênero, nações e credos não são entes em si mesmos, mas manifestações da identidade do indivíduo, que sofre o preconceito em função de uma ou mais dessas características. A coisa mais perigosa para um libertário é coletivizar o sofrimento – o que conduz a uma contradição que acaba por legitimar, novamente, a violência contra o indivíduo.
Pode haver veganos fascistas? Sabe-se que os indivíduos são criativos na hora de construir sua própria identidade (ao contrário do que os pós-modernos diriam, aliás). Mas, se houver, eles precisam preencher os cinco requisitos acima expostos (ou ideias análogas combinadas com práticas semelhantes). Se o indivíduo não esposa a violência como método sistemático, ele não será fascista – no máximo autoritário. Se as ideias que o indivíduo professa não são de natureza holista, coletivista – ele não pode ser fascista. E aqui vem a constatação – muitas ideologias e crenças da Nova Era estão mais próximas do fascismo do que, digamos, o individualismo liberal (vi). Enfim, não dá pra remover uma pedra de uma estrutura conceitual e usá-la para aplicar todo um conceito a um indivíduo ou grupo. E mesmo que haja um vegano fascista – isso não serve de prova para condenar e refutar todo um movimento.
Resumindo: quem não cultua uma entidade superior em detrimento do indivíduo (ponto 1); quem não cultua igualmente uma autoridade que deva observar cada passo dos seus súditos (ponto 2); quem não atribui a esta autoridade a função de preservar o equilíbrio em detrimento da vida, liberdade e diversidade (ponto 3); quem não acha que os indivíduos podem e devem ser exterminados em nome dessa unidade e equilíbrio, e da obediência à autoridade (ponto 4); quem não se organiza de forma paramilitar e usa de violência sistemática para atingir e sustentar estes fins (ponto 5) – não é, nem pode ser, fascista. Se por ventura houver a semelhança com um ou mais itens, mas não todos, pode-se falar de traços fascistas, mas deve-se certificar-se de que estes traços perduram no tempo para justificar tal acusação contra alguém. No caso do veganismo abolicionista, como espero ter demonstrado, não existe qualquer traço de fascismo na sua filosofia, nem na esmagadora maioria de seus adeptos – simples assim.
Fascismo e elitismo: onde estão, nos debates interseccionais?
O movimento vegano tem diversidade de pessoas e estratégias – embora menos do que eu gostaria, porque em vez de se apoiarem mutuamente, elas competem entre si. Há uma diversidade de perspectivas – neste caso, mais do que eu gostaria. Porque um movimento, como diz a palavra, deve ter um sentido, uma meta clara. “Exigir” coerência de um movimento não é nem autoritário, nem fascista, nem elitista. Em primeiro lugar, faz parte de um debate de ideias que, por vezes, pode ser acalorado, mas nem por isso deve ser tido como nocivo, se dentro dos limites do respeito – respeito que tenho sentido falta nos debates entre veganos abolicionistas e interseccionais. Diante da preponderância que estes adquiriram em certos fóruns, os abolicionistas são rapidamente atacados, rotulados, difamados e, muitas vezes, também excluídos – táticas fascistas usadas por pessoas que se proclamam libertárias. Em segundo lugar, essa busca por coerência é fundamental se queremos atingir a nossa meta – a liberdade dos animais não humanos. É por isso que o movimento existe. Contanto que ele seja ABOLICIONISTA, a diversidade de abordagens filosóficas e estratégicas é possível e inclusive desejável. Então, não estamos falando de um movimento uniforme, nem uniformizado. Quem não é abolicionista não é excluído do movimento – ele simplesmente não o integra, da mesma forma que um carnista, um pecuarista ou um vivissector. É totalmente ilógico acusar um movimento ou membro deste de fascista simplesmente por traçar um limite sobre o que é um movimento e quais são suas metas. Voltaremos a este ponto.
Mas ainda restam algumas questões. Há elitismo nas iniciativas veganas? O chamado mercado vegano, por exemplo. Ou a explosão do chamado ativismo culinário, pessoas que fazem comida vegana, geralmente a um preço só acessível a pessoas de classe média ou mais alta. Isso é elitismo? Sim, pode ser. Mas não necessariamente – tudo depende de certas condições. Essas pessoas estão divulgando o veganismo, e com o aumento deste, novas iniciativas virão, para atender às classes menos abastadas, e as próprias iniciativas existentes poderão cobrar mais barato uma vez que sua clientela aumente. Outra condição, óbvio, é que existam outras formas de ativismo que complementem estas. Este tem de fato sido um problema em alguns lugares. O erro não está necessariamente em quem quer fazer ativismo culinário – cada um deve seguir suas aptidões, não os ditames de um Comitê Central Vegano – ou na abertura de negócios que atendam aos veganos ou disponibilização de produtos veganos no mercado. O problema está em não haver pessoas para fazer outras, diversas, formas de ativismo. E se queremos chegar às classes populares, nada impede os grupos que têm essa inclinação de desenvolver suas próprias estratégias de difusão do veganismo entre os mais pobres. E elas são muito, muito, muito bem-vindas, não apenas para que ele chegue à maioria da população, mas, auxiliarmente, também para dissipar a imagem elitista que o veganismo tem – de fora, e agora, também, de dentro. Mas se nada requer que diferentes grupos – abolicionistas, eu friso – colaborem, é importante que eles se respeitem e entendam que toda forma de difusão do veganismo abolicionista – consistente, coerente, não violenta, não discriminatória – é válida.
Por fim: é o veganismo elitista? A resposta é NÃO. Primeiro, por uma questão óbvia: nós somos um movimento universalista, não estamos organizados – e espero que nunca estejamos –hierarquicamente – embora haja hierarquias informais, o que é inegável – e queremos que o veganismo seja para todos, pois somente assim poderemos realizar a liberdade animal. Segundo, o veganismo está a se difundir por todas as classes sociais. Eu próprio jamais tive tamanho contato com diversidade social, cultural, étnica, política e religiosa como depois de me tornar vegano, em 2007. E mais pessoas vêm chegando. Mas, infelizmente, lidar com a diversidade não está entre as melhores habilidades da maioria dos seres humanos – daí a virulência que os debates no meio vegano vêm adquirindo. É o caso dos interseccionais, que com sua intransigência e autoritarismo, querem deturpar o veganismo e expurgar os que discordam deles, a menos que se conformem. Não serei eu a usar de falácias que eu mesmo condenei no início desta segunda parte. Mas o fato é: a atitude dos interseccionais, tenta impor uma forma única de ação; uma visão de mundo que cultiva suas identidades em detrimento dos indivíduos, como os fascistas cultivavam a identidade nacional; que ao fazê-lo perpetuam o especismo, que é uma forma de preconceito e hierarquia estrutural. Tudo isto remete àquela ideologia vergonhosa. Não estou proclamando que o sejam, apenas apontando afinidades – ideológicas e estratégicas – maiores do que seria de se esperar de pessoas que se dizem libertárias que lutam por justiça e direitos.
Além disso, os interseccionais que, “libertários”, na luta contra opressão, combatem o “elitismo” dos veganos, são os verdadeiros elitistas – agora, sem analogia, mas literalmente. Eles defendem que uns poucos tenham salvo-conduto para explorar e matar. Eles defendem o PRIVILÉGIO de grupos tidos como oprimidos para oprimir aqueles que são ainda mais fracos. E assim ainda perpetuam a noção que eles mesmos gostam de brandir contra nós de que o movimento vegano é para um grupo de jovens brancos de classe média. Ele o será, se ninguém tiver coragem de dar o primeiro passo para levar o veganismo até os grupos discriminados e desprovidos da nossa sociedade!
Bibliografia
BROWN, Eric. Plato’s Ethics and Politics in The Republic. In: ZALTA, Edward N. (ed.). The Stanford Encyclopedia of Philosophy. Winter 2011 Edition. URL = <http://plato.stanford.edu/archives/win2011/entries/plato-ethics-politics/>.
GOLDMAN, Emma. O Indivíduo, a Sociedade e o Estado, e Outros Ensaios. São Paulo: Hedra, 2007.
MANN, Michael. Fascistas. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 2008.
QUINTON, Anthony. Conservatism. In: Goodin, R., Pettit, P., Pogge, T. (eds.) A Companion to Contemporary Political Philosophy. 2 vol. 2nd edition. Malden, USA; Oxford, UK; Victoria, AUS: Blackwell Publishing, 2007.
Notas
i – Esperando que a maioria não as usa de forma maliciosa, e que quem o faz dificilmente deixará de fazê-lo – no caso destes, este artigo ajudará quem quiser debater com tais figuras a denunciar seu discurso falacioso.
ii – Incidentalmente, Platão tentou ver suas ideias frutificarem. Para isso, embarcou numa jornada até a Sicília, a convite do soberano local, mas parece que este não estava assim tão comprometido com a ideia, afinal.
iii – Diz Michael Mann que a transcendência era “o elemento mais forte, em termos ideológicos, de seu apelo, oferecendo um horizonte plausível e viável de movimento em prol de uma sociedade melhor. A transcendência era, na realidade, o esteio central do programa eleitoral fascista” (Mann, 2008: 29).
iv – “A violência era a chave do ‘radicalismo’ do fascismo. Os fascistas derrubavam formas legais com matanças. Através do fascimo, o povo alcançaria a transcendência de classe, ‘dando com as cabeças uns nos outros’. Seu elitismo e sua organização hierárquica passariam a dominar o Estado autoritário por ele criado. Em hipótese alguma um movimento fascista seria apenas um ‘partido’. Na realidade, os fascistas italianos por muitos anos estiveram organizados apenas em grupos paramilitares. O fascismo sempre foi um movimento uniformizado, em marcha, armado, perigoso e radicalmente desestabilizador da ordem vigente” (Mann, 2008: 31).
v – Não sendo um organismo vivo, a natureza, de fato, não tem interesses. Essa é uma visão bastante polêmica, mas importante de salientar, justamente para prevenir que o veganismo venha a se confundir com o ambientalismo – como tristemente ainda acontece. Isso não implica descaso com a preservação ambiental, pois esta é do interesse dos animais – humanos e não humanos.
vi – E para antecipar qualquer argumentum ad hominem, eu digo: não, não sou liberal.
Continue lendo sobre o tema na Parte III. Perdeu a Parte I? Leia aqui