Dezembro é tido como o mês da reflexão. Seus dias são mais longos e o céu mais estrelado. Um cigarro solitário na varanda e, em meio à fumaça, tantos pensamentos. Cismas à noite. Mais um ciclo que se fecha. Quando se aproxima o fim de ano, as pessoas põem-se a questionar o que já fizeram e o que ainda pretendem fazer na vida. Retornam à cena, então, toda aquela profusão de projetos individuais, os sonhos de casamento, de um emprego novo, a viagem adiada ou, em muitos casos, a dieta milagrosa ao amanhecer do ano-novo. E a magia de dezembro não se restringe a isso. Muita gente rude torna-se afável. Egoístas ficam solidários. Alguns céticos de carteirinha até passam a trilhar pela estrada de Damasco, juro por Deus. Tudo em nome do amor, da comunhão, da paz universal.
Mas nem sempre a reflexão leva à ação. É que essa prometida solidariedade costuma ser celebrada ao redor de uma mesa onde jazem corpos ou pedaços de seres que perderam a vida justamente para se tornarem o prato principal dos banquetes natalícios. A maioria das pessoas, preocupada com o próprio paladar e de seus familiares ou amigos, nem se apercebe disso. E assim se condenam, pelo mundo, milhões de perus, porcos, frangos, vacas, peixes, carneiros e outros tantos prisioneiros inocentes que acabam sacrificados em uma cruz invisível. O amor aos animais transformados em comida parece não fazer parte da misericórdia divina. Prega-se aos quatro ventos, todavia, a virtude da compaixão.
Pela tela da TV a festa ganha proporções inimagináveis. Várias cidades erguem palcos monumentais para shows de toda ordem, com direito a uma prévia do carnaval que acontecerá somente em março. Artistas e cantores celebram a vida e o amor, com uma mão na taça e outra no espeto de churrasco. Respondem sem titubear, à repórter entrevistadora, que se fosse possível voltar no tempo seriam exatamente o que são hoje. Fariam a mesma coisa e cometeriam os mesmos erros. Em meio a esse agitado glamour quase não há espaço para arrependimentos. Arrependem-se, quando muito, só do que não fizeram ou do que não comeram. No seu dicionário, mansuetude e humildade são vocábulos desconhecidos.
Sem qualquer intenção de crítica a quem quer que seja, falo apenas por mim, eu que tantos erros já cometi. Não sou exatamente um poço de arrependimentos, mas há muitas coisas que fiz ou que omiti, e que lamentei depois. Tantas imperfeições, tantos descaminhos, tantos naufrágios. Equívocos lançados no papel, palavras que silenciei. Imagens esquecidas. Beijos cancelados. A música que não fiz nascer, o verso interrompido. Também os gatinhos que não salvei na rua, o cão miserável se arrastando pelo acostamento da estrada, quantas vezes ainda os vejo, suplicantes, no fundo da memória de minhas inquietações. Se pudesse não pensar, para que esse sorriso indeciso não se exiba para a solidão… Eu sei, tudo é tão longe, tudo é tão longe. Mas há uma canção:
De onde vem a calma daquele cara? Ele não sabe ser melhor, viu… Como não entende, de ser valente, ele não sabe ser mais viril, ele não sabe não, viu? É o mundo que anda hostil, o mundo todo é hostil… Ouço, reconheço. Melodia fora do tempo, acordes viscerais que se abrem ao espanto de existir. Vozes e sons. Breve instante de plenitude. E o mundo então se reconstrói em sua beleza original, inextinguível, na frágil harmonia do ser, na doce rebeldia da juventude. Ouço, reconheço. Los Hermanos. De onde vem este lamento, essa tão sonhada calma, capaz de redimir e de transformar? Onde a força que nos permita, simplesmente, viver e respeitar? Em que escarpa inacessível a flor renascerá?
Divagações de fim de ano, que me perdoe o leitor, penso que também fui contaminado pelo espírito de dezembro. Ao menos tenho uma justificativa poética. Eu não devia te dizer, mas essa lua, mas esse conhaque – bem o sabia Drummond – botam a gente comovido como o diabo…