Já está em todas as partes, no corre-corre das grandes cidades e na calma bovina dos pequenos municípios, no silêncio das multidões das pessoas que não se conhecem, e na confraternização da terra onde todos são amigos. O espírito natalino, manto que cobre a sociedade como os panos brancos do artista Javacheff Christo, aumenta o ritmo bate-estaca das necessidades de consumo. Já falei que o Natal é um 11 de Setembro para os animais, data que arrepia a espinha e outras partes que o decoro não me permite mencionar. Reduza tudo a Jesus, e as pessoas não vão ter como botar para fora um ano de tensão, de sorriso nervoso entre dentes, de medo da morte e da doença, da loucura que pode atingir qualquer um, da pobreza extrema, da perda de entes queridos ou da amputação social, financeira, profissional ou física.
Cabe celebrar uma suposta e longínqua data com a repetição, repetição transformada em tradição-papel-carbono, com as obrigatórias nozes e carne assada – e justamente a carne que o vizinho também come, e que cabe na bandeja da familia, como um peru, leitãozinho ou aves vindas da Ilha do Dr. Moreau, como tender, bruster e chester. E as pessoas aindam acham que comem galinha-do-sítio-da-vó.
Pouco me importa a farsa vermelha do Papai Noel, das árvores e duendes copiados do Primeiro Mundo tal como índio de relógio. Dança quem quer essa música, ou é fraco o suficiente para ser levado pelo Niágara invisível de imposições sociais – mas não se você for não-humano. E mesmo dentre os não-humanos, o azar natalino é se você for comestível – ‘ai que nojo, uma mosca na minha sopa’ – e, pior, se foi eleito por ______________ para ser o sacrifício aos deuses obrigatório para todo 24 de dezembro. Como a loira para o King Kong, mas estamos nós pintados, de bunda de fora e dizendo ‘uga-uga’, só que pelo celular.
Aceito sugestões para o preenchimento da lacuna acima.
Mais consumo, mais vendas, e um pega-trouxa chamado desenvolvimento, que é eufemismo para um maior número de cilindros no motor que tritura natureza e animais, para fornecer pacotes de salgadinhos e embalagens coloridas aos bilhões de humanos. Mas somente aos que dão ‘feliz Natal e boas festas’ ao zelador, ao porteiro e aos demais ‘colaboradores’.
Esses são os que sabem das coisas e têm um coração bom, então vou parar de ser ácido e louvar até o que, por papel-carbono, come carne ‘em Jesus’, como já ouvi dizerem. Comprar uma bobagem embalada em papel metalizado para presentear alguém pois está aberta a temporada de demonstrações de afeto é tão espontâneo como segurar o tesão porque há fila de carros na porta do motel… mas agora liberou uma vaga, volta a espontaneidade do ponto onde parou.
Não, não levo a sério quem ignora escravidão, sofrimento e morte de animais para minutos de prazer gastronômico embalado na ideia de que ‘é gostoso, pronto’ ou ‘o porco fuça para a frente, a galinha cisca para trás’ e demais crendices que recebem polegar para cima da maioria.
Falar de paz e esperança em cartões comprados em papelaria e ser insensível aos Morlocks demonstra mais a necessidade própria de aplacar o remorso, do que alterar a realidade para que no ano seguinte não seja impositivo dizer a mesma coisa, com a repetição de ‘Então é Natal’ na voz da cantora Simone, a lágrima da vó, o Autorama/Playstation para as crianças, e algum animal da Ilha do Dr. Moreau com arroz à grega.