EnglishEspañolPortuguês

'Da dificuldade de ser cão': livro retrata a fidelidade dos cães

24 de maio de 2009
7 min. de leitura
A-
A+

Eu não me recordo de ter lido um livro tão interessante sobre cães como “Da dificuldade de ser cão” (Companhia das Letras, 143 pgs, 2002), de Roger Grenier, que entre outras coisas colaborou com Albert Camus, foi jornalista do France-Soir e autor de romances, contos e adaptações para a televisão.
O livro foi comprado por R$ 15 num sebo de Curitiba – e aqui convém observar que a cidade tem os melhores sebos do Brasil, embora os preços em alguns sejam um pouco exagerados.
Voltando ao livro e ao tema, Grenier consegue ser erudito sem ser maçante ao falar de um tema que pode ser considerado de pouca relevância. Texto leve, curto e na mosca transforma leitura em prazer. E transmite a importância de um cão na vida de quem o tem.
Um cão é o animal que consegue ser fiel ao homem mais que o próprio homem. O homem se apaixona por uma mulher – e vice-versa; pode ter milhões de amigos, mas tudo isto pode ser – e quase sempre é – passageiro. A amizade de um cão é eterna. Forever, mesmo.
E para defender a sua tese – de muita gente, como se vê com a leitura do livro – Grenier recorre a nada menos que 47 autores e obras nas quais podemos encontrar testemunhos de que o cão é um bicho extraordinário, testemunhos feitos por pessoas como Napoleão Bonaparte, Louis-Ferdinand Céline, Miguel de Cervantes, Gustave Flaubert, F. Scott Fitzgerald, E.T.A. Hoffmann, Franz Kafka, Maurice Maeterlinck, George Orwell, Jean-Paul Sarte e Robert Louis Stevenson, para ficar em alguns citados. Um time de respeito.
E, caso raro num livro desta natureza, se o sujeito não for durão, como diria Leila Diniz, vai ter de ler escondido. Não é uma ou duas vezes que dá vontade de verter uma lágrima porque o cão é de uma fidelidade canina, de uma afeição extraordinária, assim como são pujantes algumas histórias de amizade do cão com o homem.
Basta citar o caso de Ulisses. Foi para a guerra em Tróia, ficou fora de casa por 20 anos e quando voltou já velho, para verificar o quanto andava a casa, mulher e criados, disfarçou e apareceu na propriedade. Penélope, a mulher, nem percebeu o marido. Empregados nem estavam ai.
O fiel Argos, velho, abandonado, cheio de carrapatos, em cima de um monte de estrumes de mulas e bois, bateu o olho no estranho e reconheceu o seu dono. Levantou, tentou andar, não conseguiu de tão velho, abaixou as orelhas e balançou o rabo.
Ulisses não resistiu: virou a cabeça de lado e chorou. Nem Poseidon, nem os troianos, nem os ciclopes gigantes, nem as bruxas dos mares bravios arrancaram lágrima do herói. Argos, sim.
Maeterlinck tem uma teoria sobre o cão. Ele desconfia do asno, do carneiro, da galinha, do gato (“que nos maldiz no seu coração misterioso”) e até dos vegetais. Todos se pudessem se livrariam do homem sem o menor remorso – quer dizer, se também sentissem remorso.
O cão reconhece no homem uma espécie de “deus incontestável, tangível, irrecusável e definitivo”. Ele não precisa, como o homem, buscar nas trevas uma força perfeita, superior e infinita. Para ele, basta o homem. E a realidade confirma a teoria.
Há uma história na Segunda Guerra Mundial que ilustra a natureza do cão. Prisioneiros judeus caminhavam numa longa fila vigiados por soldados alemães. Para os alemães e até para os próprios judeus, os prisioneiros já não pertenciam à espécie humana. Um cão errante se alinha com os prisioneiros e os segue. Para o cão, os prisioneiros ainda eram homens.
Octave Mirabeau tem outra teoria sugestiva: “Os cães, sem nunca terem aprendido, falam francês, inglês, alemão, russo e groenlandês, assim como o hindustani, o télugo, o baixo-bretão e o baixo-normando, todos os dialetos e todas as gírias”.
Não que um cão seja poliglota, mas ele compreende em qualquer língua. Se for levado de um povo a outro vai compreender o homem, algo impossível até ao próprio homem.
Para Colette Audry – em Atrás da banheira – as pessoas gostam de cães por uma razão simples, porque elas encontram no cão “um asilo mais secreto e ainda mais seguro que o coração de sua mãe”. O mais cruel nesta relação é a incrível capacidade do cão de perdoar.
Os algozes dos animais sabem que depois de um ato agressivo, o cão responde com uma lambida. Não há nada mais comovente. Albert Camus abordou esta característica em seu livro O estrangeiro. O velho Salamano por oito anos insulta e espanca seu cachorro, mas ainda assim eles formam um casal inseparável e terminam por se parecerem.
Aliás, o velho ganhou o cão quando a sua mulher morreu. Ganhou para substituí-la. Em A queda, outro livro de Camus, Clemence diz que gosta dos cães “porque eles perdoam sempre”. Só os cães. Os homens, algumas vezes. E olhe lá.
De Flaubert, Grenier deduz que um animal doméstico – no caso do autor de “Madame Bovary”, era um papagaio – é uma espécie de proteção contra os ultrajes da vida, um recurso contra o mundo; a certeza, um pouco vã, de ser verdadeiramente amado, um jeito de estar ao mesmo tempo menos só e mais só. Talvez por esta razão uma pessoa tão angustiada e deprimida como Virginia Wolf, não apenas tinha o seu cão, como se encantava com os seus talentos.
O nome do cachorro de Virginia – um cocker spaniel – era Flush. Ela se impressionava com a capacidade olfativa dele. O maior dos poetas oscila entre o cheiro da rosa e do estrume, não há meio termo. Para o cão não, o cão vive num mundo essencialmente de olfato.
Um cheiro libera um milhão de lembranças. Virginia diria: “Mesmo a religião era um cheiro para Flush”. E ela foi além: ela garantia que nem Swinburne, nem mesmo Shakespeare, seriam capazes de descrever a infinidade de cheiros percebidos por Flush e tampouco de traduzir o significado que tinham.
Na questão olfativa, o psicanalista François Gantheret se surpreendia com a habilidade dos cães de caça de seguir o rastro da presa por dezenas de quilômetros e no caso de perderem a pista de voltar reencontrando seus próprios rastros, suas ínfimas moléculas de odores.
Se Virginia se encantava com um cão de estirpe, Baudelaire se derretia pelos vira-latas: “Eu canto o cão enlameado, o pobre cão, o cão sem casa, o mais vagabundo, o cão saltimbanco”.
Para o grande poeta francês, o charme canino estava naqueles cães calamitosos “que erram solitários, nas ravinas sinuosas das imensas cidades, ou os que disseram ao homem abandonado, com olhos faiscantes e espirituais: Leve-me com você e de nossas duas misérias faremos uma espécie de felicidade”. Só um grande poeta para traduzir algo tão intraduzível quanto a amizade de um cão.
Isto nos faz lembrar o jornalista Mussa José Assis – que não está no livro mas se o autor o conhecesse poderia recorrer aos conhecimentos caninos de Mussa – que um dia sentenciou: “O cão reconhece humanidade naqueles que nem os homens reconhecem mais, como o bêbado e o mendigo. Os cães nunca os abandonam”. E Mussa não está sozinho nesta avaliação, ele está com Napoleão. O Bonaparte.
Que em “Memorial de Santa Helena” conta que percorreu um campo de batalha na Itália do qual os mortos ainda não haviam sido retirados. Um cachorro ao lado do cadáver de seu dono, gemia, lambia-lhe o rosto. Napoleão confessou: “Nunca nada, em nenhum dos meus campos de batalha, me impressionou tanto”. É preciso acrescentar mais? Não.
O cão é o único animal a merecer como dedicatória a música Amigo, de Roberto Carlos. Ele merece estes versos: “Você é meu amigo de fé, meu irmão camarada. Amigo de tantos caminhos, de tantas jornadas”. Quem, além de um cão, os merece? Ninguém.

Por: Edilson Pereira (Paraná Online)

Você viu?

Ir para o topo