No início desta semana, os organizadores da exposição de arte “Made by… Feito por Brasileiros”, sediada no antigo Hospital Matarazzo em São Paulo, removeram o vídeo Usine, que mostrava cães, galos, cobras, escorpiões e outros animais confinados de forma extremamente não natural em um mesmo espaço, se atacando. A remoção veio depois de uma onda de protestos virtuais, incluindo uma petição criada pelo Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal (FNPDA), que pedia que a ministra da Cultura Marta Suplicy demandasse a remoção imediata do filme. Embora o objetivo mais urgente do movimento animal tenha sido atingido – a remoção imediata da obra -, declarações das principais figuras públicas envolvidas deixaram a certeza de quanto a compaixão por outras espécies e entendimento sobre os direitos animais já estabelecidos por lei no Brasil ainda tem que progredir.
Marta não se posicionou claramente sobre o assunto, dizendo apenas que condena os maus-tratos de animais, e que a obra não lhe foi apresentada durante a visita que fez à exposição. No entanto, a ministra se negou a intervir dizendo que “a mostra é uma ocupação artística, de caráter privado, e tem uma curadoria que foi responsável pela escolha das obras” e que “não cabe ao ministério fazer controle de conteúdo”. O curador da exposição, o francês Marc Pottier, foi bem mais longe, ao “lamentar” a exclusão do vídeo e dizer que não acatou a decisão em bases morais, ou de compaixão, mas sim “em nome da segurança e da tranquilidade do público da exposição”. Ambos também se abstiveram de comentários sobre o fato de que as obras do autor de Usine, o franco-argelino Adel Abessemed, já terem sido removidas de exposições nos EUA, Escócia e Itália.
Nem Marta, nem Pottier e nem mesmo os grandes veículos de mídia que reportaram o caso parecem ter compreendido ou ilustrado exatamente qual era a situação com que estavam lidando. Embora o responsável pelo vídeo use a estratégia de recusar-se a dar detalhes, é bastante pertinente afirmar que o enfrentamento cruel e não natural dos animais foi bem planejado e causado intencionalmente para que a dita ‘obra’ fosse produzida.
Os cães e galos que foram filmados no vídeo Usine, de Abdessemed, não estavam meramente se atacando, de forma natural ou puramente instintiva. Eles definitivamente não exibiam um comportamento natural, normal e saudável de animais que são criados de forma apropriada, compassiva e ética. O contínuo enfrentamento dos galos que ali se encontravam é típico de galos que foram treinados e estimulados a brigar para a realização rinhas organizadas. Galos raramente se enfrentam na natureza, ou em criações. Muito pelo contrário, eles geralmente convivem muito bem quando em harmonia com seu ambiente. Da mesma forma, os cães, aparentemente da raça pitbull, figuram uma cena comumente observada em treinamentos para rinhas, onde um cão que não tem aptidão para brigas é usado como isca para que dois outros cães com agressividade estimulada o matem para depois começar um enfrentamento, frequentemente fatal, entre eles próprios. Além disso, os três cães mostram sinais de má alimentação, com coluna e costelas bastante evidentes, o que é outra tática de treinamento para rinhas para aumentar a agressividade. Dados todos esses componentes, fica fácil entender por que a filmagem de Abdessemed foi feita no México, onde a legislação é fraca o suficiente para permitir rinhas de animais organizadas, e não nos EUA ou França, países onde o ator reside atualmente e onde rinhas são ilegais e frequentemente associadas a outras atividades do crime organizado.
No Brasil, as rinhas são proibidas desde 1934. Atualmente, casos de rinhas podem ser enquadrados como crimes ambientais – por maus-tratos ou abuso animal – cuja pena é detenção de três meses a um ano e multa. Incitações ou apologias a atos criminosos também são ilegais e sujeitos a detenção ou multa no nosso país. Por isso, a questão levantada pelo movimento animal, de que ao considerar o filme Usine uma obra arte os curadores do evento fizeram uma clara incitação a crimes de abuso a animais, também permaneceu intocada por Marta e pela curadoria da exposição. O FNPDA agora luta para que isso seja analisado pelo Ministério Público de São Paulo.
Mas a boa notícia é que a repercussão negativa e retirada extremamente rápida do filme é um forte indício de que a população brasileira não mais aceita crueldade contra animais disfarçada de arte ou tradição. Uma polêmica semelhante ocorreu na Bienal de 2007, onde o artista Guillermo Vargas expôs um cão amarrado passando fome. Ou, mais recentemente, na Bienal de 2010, onde o artista Nuno Ramos expôs três urubus, que foram alojados em um ambiente completamente inadequado para a espécie. Em ambos os casos, a reação da população foi imediata e similar, levando à remoção dos animais das exposições.
Não podemos mais deixar que atos de crueldade sejam classificados como arte, tradição ou entretenimento. Esperamos trabalhar com diversos atores da sociedade para que a mesma lógica moral e de compaixão aplique-se de forma democrática e constitucional a circos, rodeios e vaquejadas.
O Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal, entidade que congrega mais de 100 ONGs de proteção animal em todas as regiões do Brasil, representa uma cultura de paz, e não de violência, que se estende não somente aos humanos, mas também a animais não-humanos. Nossos atos são, e sempre continuarão sendo, democráticos e pacíficos. Para nós, a conclusão de tudo isso é bastante clara: a cultura acaba onde a crueldade começa. Por isso, nós continuaremos a perguntar se o ministério da Cultura e demais autoridades relevantes se elas concordam conosco, ou não. O movimento continuará até que respostas e leis a respeito fiquem extremamente claras.
Fonte: Brasil Post