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A cruz

19 de dezembro de 2015
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Deve ser Natal. Na noite que se extingue ainda dá pra ver as luzinhas pulsantes da cidade ao longe. Aos primeiros clarões da manhã percorro, com os olhos da imaginação, o cenário urbano embriagado pelo vinho amargo da véspera. Logo avisto a torre da Igreja e, maior do que ela, aquele pinheiro ornamentado com bolas vermelhas e uma estrela de prata pousada lá no alto. Na praça do espetáculo os sinos do campanário não resistiram ao carro de som cujo rumor pude ouvir aqui da estrada, a quilômetros e quilômetros de distância. Era gente a beber, gente a dançar, gente a comer até cair. Como diria um velho poeta quase esquecido, “tempo sagrado num espaço profano”.
Aos poucos o campo também amanhece. Sim, posso agora reconhecer as coisas ao meu redor: árvores, rochedos, planícies sem fim. Mas espere um pouco, à beira do caminho alguém largou um enorme caibro roliço em forma de T. Aproximo-me para ver melhor: são duas vigas transversais presas entre si, como uma cruz. Tábua pesadíssima, tento movimentá-la com as pernas. Não mexeu um centímetro. Agarro seu tronco para erguê-la nos braços. Esforço inútil. Quem a teria puxado até aqui? Com que forças conseguiram trazê-la para este desterro? Estaria a cruz abandonada?
Intrigado com a aparição, detenho-me a examinar a peça de madeira. Nos eixos cruzados há um apelo de transcendência. A viga menor possui buracos encravados nas extremidades. Na parte superior do tronco, junto à cabeceira, resquícios de manchas rubras sugerem o sangue coagulado dos séculos. Sinto o relevo de inscrições ininteligíveis ao deslizar as mãos pela sua superfície. Que coisa estranha, é como se um tempo remoto se fizesse aqui presente, tempo de lutas, de sofrimentos muitos, de repressões tantas. O vento assobia aos meus ouvidos. Alguma voz? Algum nome? Ecos do nada e de ninguém…
Olhando mais atentamente vejo que o caibro assume outros formatos: é uma lança pontiaguda, é um porrete de pau, é um bastão elétrico, uma corrente de ferro, é um arpão, é uma haste de prender, é um bisturi gigante, é um laço hirto, é tudo aquilo que a gente não imagina e existe, é uma corda retesada, um macabro trilho aéreo, é um chicote sanguinolento. Ouço então gritos abafados sem saber de onde vêm. Milhões de criaturas sob a angústia milenar de um peso que não alivia. Vacas, bois, galinhas, peixes, patos, porcos, baleias, perus… Será que o signo do sofrer incita a nossa capacidade de reagir? Que sei eu da dor que os outros deveras sentem?
Psssst! Não faça barulho. Aqueles arbustos estão se mexendo, eu juro, e não é o vento. Recuo alguns passos e permaneço quieto a espreitar. A folhagem se agita mais e alguém de andar calmo sai dali vindo do brejo do rio da mata sei lá de onde. Que diabos é? Aos poucos consigo vê-lo… É um ser esquálido, desgrenhado, vestido com farrapos. Um andarilho, quem sabe, na singular simplicidade do ser… O rosto barbado, a pele cor de terra, os olhos distantes. Que idade tem? Talvez mais do que verdadeiramente possui ou bem menos do que aparenta. Pouco importa, ele deve ter dormido na floresta e agora voltava para buscar o que era seu.
O homem se aproxima devagar e agacha ao lado da cruz. Olha para os lados como se procurasse uma direção pra seguir. Está indeciso. Vou ficando cada vez mais intrigado: haveria mulher ou filhos à sua espera? Carinhos de mãe, um cão amigo? Creio que não, sua estrada é de pedra, sua coroa de espinhos. Mas há uma ausência que lhe dói secretamente. Condenado ao exílio de si próprio, ele parece procurar no horizonte um mundo perdido ou imaginário que é somente seu. O sujeito então se ergue e, de modo impressionante, levanta a viga para colocá-la sobre os ombros. Eis que mãos invisíveis passam a açoitá-lo:
—Êh, desgraçado. Segue teu caminho errante! Levai a vossa cruz…
E dá-lhe chibatadas, um estalo, depois outro, outros mais, numa sequência contínua de golpes. Mas ele aguenta. Hesita, anda, para, anda de novo, converge de um lado a outro, estanca, esmorece, ajoelha, levanta, recomeça a andar. E a chibata a lhe arder nas costas. Já não sabe quem o agride, os rostos são tantos e por vezes conhecidos. Resta-lhe apenas viver, estritamente viver, acordar, comer, dormir, sonhar. E assim ele prossegue em sua caminhada, sobrevivente, a arrastar a sua cruz. Seu Natal é outro, bem longe…

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