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Crônica: "Hipocrisia"

17 de dezembro de 2009
4 min. de leitura
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Por Rachel Siqueira
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Era uma sexta-feira à tarde, quando a campainha tocou.

“- Dona, minha mãe tá doente, preciso viajar pro interior e só tenho 2 Reais, a passagem custa 40, tem como a senhora ajudar?”

“- Tem não, você é drogado. E nada criativo. Semana passada veio aqui, com a mesma conversa, mãe doente, 2 Reais”

“- Mas é verdade, dona” – e mostrou-me algumas moedas, poucas, totalizando uns 50 centavos.

“- O que sua mãe tem?”

Cerca de dois segundos de silêncio se passaram, então interrompidos por:

“- Ostoporósio”

“- Ah sim, deve ser doença do interior mesmo, nunca ouvi falar”

O brusco ruído de freio nos roubou a atenção, olhamos e a poucos metros parou um carro. Duas senhoras caminharam ao seu encontro, uma delas exclamando palavras que não posso contar para vocês, mas deixo a dica: rimavam com “viva a chuva!”.

Em marcha à ré o carro regressou alguns metros e então arrancou, desaparecendo na esquina. Uma das mulheres tapava seus olhos com as mãos e a outra falava qualquer coisa, enquanto olhava para o animal recém atropelado, ao chão estendido. Era uma cadela, malhada e magrinha, bem conhecida ali na região. Há vários meses Laika, como era chamada, perambulava pelas redondezas. Inicialmente vivia no quintal da casa de uma família vizinha, que ao se mudar, tudo consigo levou, menos ela. Por algumas semanas chorou ao portão da casa e com sua lamúria tanto incomodou, que um dia recebeu “umas pauladas” – palavras do “Seu” Miguel, morador da casa ao lado, que orgulhosamente relatava a eficácia de sua “didática”, suposta responsável pelo fim do choro da cadela.

Em busca do que comer, Laika passava boa parte do tempo em frente a um bar, de onde ocasionalmente lhe jogavam o resto de alguma coisa. Foi assim que, tempos atrás, nos conhecemos.

Estava fazendo uma caminhada, quando me deparei com Laika, que atentamente olhava para dentro do bar. Um pedaço de comida foi atirado à calçada e num piscar de olhos engolido por ela. A passos lentos tentei me aproximar, mas ela aparentava medo, se afastou. No balcão perguntei o que tinham, de comer, que não levava carne. Que sentido faria alimentar um animal com a morte de outro? Comprei uns salgadinhos de milho, sobre a calçada me sentei e os coloquei ao chão. Ela veio, devorou a comida e os segundos seguintes me marcaram. Jamais me esquecerei daquele olhar sofrido e tão grato. A partir daquele dia, sempre a oferecia alimento e água, mas um teto não pude dar e agora, ela precisava de um lugar onde descansar em paz.

Uma das mulheres estava chorando, à outra pedi ajuda para o transporte do corpo, mas ela se recusou. O até então incoveniente drogado se voluntariou a me ajudar e juntos tiramos Laika do meio da rua. Pela primeira vez em anos, a olharam com piedade, antes “maldita”, agora “querida”.

Responsável pela tragédia, o motorista era referido por adjetivos nada bons. Sua imprudência custou uma vida, vida essa que era negligenciada, vivida em miséria. O mal que causou não foi deliberado, ao contrário do mal causado por todos os vizinhos que sempre a enxotaram, negando atenção e alimento. Mas agora se sentiam no direito de amaldiçoar o motorista.

No Brasil, milhares de animais são mortos a cada hora para servirem de comida a humanos que em momento algum de sua carne precisam para viver. A equilibrada dieta vegana é inquestionavelmente mais saudável que a dieta de um onívoro, no entanto, humanos comercializam, escravizam e matam animais para seu “benefício”. Entre aspas, já que o único benefício seria o saciar a gula.

Naquela tarde, disse adeus a Laika em um terreno baldio, onde foi enterrada. Lembrei-me da primeira vez que a vi, sua fragilidade, o medo de encarar humanos, freqüentes malfeitores. Seu corpo foi coberto, com algumas pedrinhas marquei o local. Não derramei lágrimas, ainda que triste pelo evento, Laika foi simplesmente mais um dos milhões de animais que diariamente são mortos. Ao menos sua vida não se resumiu a escravidão, como a de outros tantos, que terminam em pratos.

Era o domingo seguinte, quando em frente à sua casa, vi a vizinha que tanto chorou pela morte de Laika, saboreando pedaços de animais carbonizados, num espeto.

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