Um dia eu tive uma lembrança. Chegou tarde, uma imagem como um foco de luz sobre as sombras do pensamento. Ele era um porco, e comia num cochinho feito de pedra, que meu pai fez. Tomava água em outro igual. Tenho tão poucas lembranças, mas uma ficou: sua morte. Eu era tão criança, só consigo lembrar de uma sensação: aquilo não era certo.
Apenas ouvia os gritos. A madrinha, que nunca vinha me visitar, para ajudar a matar o porco, apareceu.
Não suportava ouvir, sentir parte de sua dor. Por que matar? Eu me pergunto hoje. Na época só sentia um nó no peito.
A mãe me dizia: Sentir é pior, eles sofrem mais para morrer. Me escondi para tentar ajudá-lo. Fui para baixo da cama, acreditando que assim ele morreria mais rápido e pararia de sofrer.
Eu sofria para viver. E me dei conta de que, na vida, estamos sempre nas mãos dos outros. Eles decidem se você merece viver ou morrer.
Agora mais tarde, depois de mais ou menos doze anos de veganismo, depois de ter visto tanta coisa e já habilitada a lidar com o mal do mundo, aquela cena do porco tomando água veio de repente na minha mente, em um dia qualquer.
Lembrar me fez tanto mal, me fez sentar lá na sala e chorar. Eu vivi naquela casa, em meio a animais sendo mortos, galinhas, gansos, porcos, minha mãe recolhendo ovos com toda a naturalidade, arrancando as penas dos patos para fazer toda a sorte de coisas que depois desapareceram no tempo. A dor diferente de outras dores. Tudo lá fora parecia (mais) normal e era tão cruel quanto.
O veganismo surgiu depois, e tarde portanto, quando vi o documentário Terráqueos e percebi, apenas por uma questão de ser o óbvio: perante a exploração, a dor, o uso do outro, eu decido não mais compactuar. Uma amiga me disse: o vegano sempre acha que se tornou vegano muito tarde, que poderia ter sido antes… E, sim, é verdade.
O gritante, sem dúvida, era que eu precisava fazer algo para ter um mínimo de decência com tudo o que eu considerava honesto. E fiz. Não decidi ser vegana por culpa, por medo de doenças, nem por nada. Era o que precisava fazer. Me tornei vegana.
Meu primeiro sonho: me vi abrindo uma geladeira cheia de animais. Na primeira semana em que vacilei um instante na minha transição.
Mas esses tempos, depois de tudo, lembrei dessa cena do porco, a memória emocional do que eu vi lá atrás. Eu comi carne boa parte de minha vida, mas pertenciam a seres desconhecidos. Não tinha um compromisso com nenhum daqueles animais anônimos, assassinados por mãos que a sociedade contratou. Este animal, não. Eu o conheci, e até mesmo devo ter cuidado dele, sem nenhum tipo de apego, disso me recordo muito bem! Nunca tive aquela culpa de ter visto um bicho morrer e nunca mais ter comido aquele “tipo” de carne. Mas um dia, nasceu do nada a lembrança culposa e sentida. Precisei sentar no sofá para chorar. Aqueles animais todos, passaram perto de mim, e nada fiz.
Um dia, ao contar certas coisas para uma pessoa, ela me perguntou: o que poderia fazer para ajudar os animais. Só há uma coisa: ser vegano. O veganismo corta a demanda de mercado, salva milhares de animais das cadeias de exploração e morte. Uma pessoa vegana deixa de consumir muitas coisas durante 24 horas todos os dias, do café da manhã até a noite, todas as refeições sempre têm algum ítem de origem animal.
O vegano, mesmo o mais solitário deles, é sempre uma bandeira ao vento, ele em si já chama a atenção. Todos querem saber sobre sua dieta, seus motivos, e é impactante sua maneira de ver e ser no mundo. Deixar de comer algo em favor do outro, quando esse outro não é de nossa espécie, não é semelhante à nós e nem o conhecemos, é sim um ato de nobreza de caráter.
Pois é fácil fazer algo por nossa saúde ou pelo nosso “semelhante” quando é um de nossos iguais em espécie. É fácil fazer o que todo mundo faz, o aceitável socialmente. Mas peitar o sistema, fazer o diferente porém necessário, se negar a pagar e compactuar com assassinato sem temer ser desprezado pelos seus, requer um amadurecimento. Requer um grande foda-se às regras de aceitação e vigilância social. Quem se aventura a dizer não, percebe uma outra dimensão, na qual faz um bem aos animais, e serve de bandeira para a paz. Uma paz que causa ainda incômodo aos outros, mas sim, é paz.