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Crise climática põe tartarugas amazônicas na berlinda

Eventos extremos e mudanças no regime de chuvas, dos rios e na temperatura ameaçam o futuro de quelônios, já pressionados pela captura predatória

7 de agosto de 2025
Duda Menegassi
9 min. de leitura
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O tracajá é uma das espécies de tartarugas amazônicas de água doce impactadas pela crise climática. Foto: Nani Araguari/Projeto Tracajás

Com movimentos desajeitados, típicos de quem nada pela primeira vez, dezenas, centenas, às vezes até milhares de pequenas tartarugas amazônicas de uma vez dão suas primeiras “braçadas” em águas amazônicas. Em contraste com cenas de soltura como essas, realizadas por projetos de conservação que lutam para proteger os animais de casco da captura predatória na Amazônia, estão cenas dramáticas de filhotes enterrados na lama, ovos cozidos pelo calor e bichos que nascem com má formação. O cruel contraste é um retrato dos efeitos nefastos da crise climática sobre as tartarugas de água doce amazônicas.

A temporada de desova dos quelônios ocorre associada ao período de seca, quando os rios baixam e ficam expostas as praias fluviais que servem de lar aos ninhos das tartarugas. E enquanto o calendário se aproxima de mais um período de seca, que normalmente inicia em setembro na Amazônia, equipes de projeto de conservação se preparam para mais um ciclo de trabalho para proteger os ovos cobiçados das tartarugas amazônicas.

Chamado por cientistas de quelônios – nome dado ao grupo de répteis com casco, que incluem tartarugas, jabutis e cágados – estes animais são vítimas históricas da captura ilegal tanto dos ovos quanto dos indivíduos adultos para consumo ou comércio clandestino e são iguarias muito apreciadas em diversas regiões da Amazônia.

A lista de ameaças, entretanto, pode ser acrescida pela construção de barragens, que alteram o ritmo natural de cheias do rio e disponibilidade das áreas de desova; e ameaças mais contemporâneas, tal qual os microplásticos, a contaminação dos rios com agrotóxicos e remédios e, claro, a crise climática.

Mudanças no regime dos rios, nas chuvas e na temperatura – provocadas como resultado de um planeta mais quente – tem bagunçado a vida dos quelônios.

Uma das iniciativas mais longevas para conservação de quelônios, o Programa Pé-de-Pincha, executado pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) em parceria com o Ibama e o ICMBio, que realiza o manejo comunitário dos animais e acompanha essas transformações desde 1999.

“No início, nós achávamos que o principal impacto das mudanças climáticas era a perda da área de desova, por conta das super cheias, mas hoje entendemos que isso não afeta tanto porque os bichos têm uma resiliência grande, eles buscam novas áreas. O maior impacto é o clima cada vez maior de extremos, com super cheias e super secas, que tem diminuído o sucesso dos nascimentos. O real problema não é a área de desova, mas a taxa de eclosão”, explica Paulo Cesar Andrade, professor da UFAM e coordenador-geral do Pé-de-Pìncha.

Presente hoje em mais de 120 áreas em 19 municípios, 17 do Amazonas e dois no oeste do Pará, o programa acompanha a situação das tartarugas nas calhas do rio Negro, Purus, até a região do Baixo Amazonas. Ao longo desses 26 anos, já devolveu aos rios mais de 11,5 milhões de filhotes – entre tracajás (Podocnemis unifilis), tartarugas-da-amazônia (Podocnemis expansa), iaçás (Podocnemis sextuberculata) e irapucas (Podocnemis erythrocephala).

Um dos fatores fundamentais, explica o coordenador, são as chuvas. Tanto no meio do período da seca, quando funcionam como um “despertador” para que as tartarugas comecem a desovar, quanto ao final da seca, quando são cruciais para molhar a terra e facilitar a saída dos filhotes.

Secas prolongadas e menos chuva podem aumentar a área de desova e permitir até um maior número de ninhos, “mas a taxa de nascimento é menor, porque eles não conseguem sair do ovo, o ovo pode cozinhar e há maior índice de ataque de formigas também”, conta Paulo.

Chuvas em excesso também são um problema para o nascimento porque aumentam as chances dos ovos sofrerem com fungos e ataques de larvas de moscas, que aproveitam a umidade da areia para chegar aos ovos. “É necessário uma situação de equilíbrio”, reforça o professor da UFAM.

Os eventos extremos influenciam também o sexo dos quelônios. Em anos muito quentes, a tendência é nascerem mais fêmeas. Já em anos mais chuvosos e frios, a predominância seria dos machos. “Em 2021, por exemplo, tivemos um ano extremamente chuvoso aqui e na maioria das áreas nasceram 100% machos”, lembra Paulo.

Dos últimos 15 anos, o rio Negro, no Amazonas, viveu cheias extremas em mais da metade, quando o rio ultrapassou o nível de 29 metros, que representa a cota de emergência. A pior delas em 2021, quando a água ultrapassou os 30 metros em Manaus.

Este ano, o cenário de cheia extrema se repetiu no estado, com 40 dos 62 municípios amazonenses oficialmente em situação de emergência.

“Quando começamos o trabalho [em 1999], nos primeiros dez anos não tivemos nenhum evento extremo. A última grande cheia aqui no Amazonas era de 1953. Aí veio a cheia de 2009, 2012… e a de 2021 que quebrou o recorde”, comenta Paulo sobre como cheias extremas se tornaram rotina no estado.

“E nós tínhamos super secas em intervalos de cinco em cinco anos e agora em 2023 e 2024 foram dois anos severos de seca seguidos”, acrescenta o coordenador do Pé-de-Pincha.

As secas prolongadas cada vez mais frequentes impactam ainda a disponibilidade de alimento para as tartarugas e, consequentemente, na redução da desova. De acordo com Paulo, na sequência de secas severas entre 2023 e 2024, algumas praias contabilizaram metade do número esperado de ninhos e outras nem ao menos receberam desova, porque tornaram-se inacessíveis.

“Em alguns lugares onde antes desovavam mais de mil fêmeas ficaram tão isolados, só com lama, que os animais não conseguiram chegar e tiveram que ir para outros ou não desovaram”, explica. “Foram eventos bem mais extremos do que tínhamos visto até 2022”, completa.

Mesmo entre os nascimentos houve motivos de preocupação, com filhotes que nasceram prematuros, debilitados e com problemas neurológicos.

A bióloga Marcela Magalhães, professora da UFAM e especialista em quelônios, explica que as temperaturas mais altas comprometem o desenvolvimento embrionário. “Alguns ovos não se desenvolveram, outros cozinharam [pelo calor] e em alguns lugares nasceram filhotes muito pequenos, porque o calor acelera o desenvolvimento. Além disso, houve casos de má formação, porque a areia fica tão quente que ela fica dura e amassa os ovos”, detalha a especialista que atua junto com comunidades da Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Uatumã no manejo comunitário de quelônios.

Em locais onde a faixa de areia ficou muito extensa, as tartarugas recém-nascidas morreram no caminho, antes mesmo de chegar no rio, detalha Marcela.

Os adultos também sofreram com a estiagem extrema. “Quando seca muito eles se enterram na lama. Mas na seca de 2024, a lama virou terra esturricada de um dia para o outro. E os animais morreram secos dentro dela”, diz o coordenador do Pé-de-Pincha, que explica que ainda estão consolidando os dados a partir de 2023 para entender em números o impacto das últimas secas nas populações de quelônios.

Além disso, seja na lama ou empoçados onde ainda há água, os animais ficam mais vulneráveis à captura ilegal, pois não conseguem fugir.

“Você consegue recuperar as populações com um trabalho de conservação de longo prazo, mas o problema é a frequência desses eventos extremos, porque os animais não conseguem acompanhar. É um ano atrás do outro. Antes eles tinham um intervalo maior entre esses eventos para se recuperar”, desabafa Paulo Andrade.

“As tartarugas são animais antigos, de origem no Triássico, já passaram por várias mudanças globais. A pergunta é: como as espécies vão reagir com essas mudanças tão rápidas?”, questiona a bióloga Marcela Magalhães.

Desafio de planejamento

As mudanças climáticas impactam também a vida de quem trabalha para garantir sua conservação.

“Em 2023 e 2024 foi uma estiagem absurda aqui na nossa região. Os próprios moradores falaram que nunca haviam visto uma seca como essa. E isso interfere. Não só na nidificação e no manejo, mas dificulta nosso trabalho. Tem lugar que é só andando e puxando o barco”, conta a analista da Floresta Nacional do Amapá, Laís Ohara, que coordenou o Projeto Tracajá.

O projeto, que em 2024 realizou a soltura recorde de mais de 10 mil filhotes de tracajás (Podocnemis unifilis) nos rios Araguari e Falsino, que margeiam a área protegida amapaense, investia na vigília dos ninhos em praias remotas e na translocação de ninhos de fácil acesso para locais seguros, para protegê-los contra a predação – principalmente humana – e garantir os nascimentos. Para isso, precisam chegar no tempo certo.

Com um clima cada vez mais imprevisível, é difícil acertar o cronograma das ações com o momento auge da desova, por exemplo.

“Em 2022, o auge foi no meio de setembro. Em 2023, planejamos para essa data. O que aconteceu? Secou muito antes e as tartarugas começaram a desovar em agosto e nós não estávamos mobilizados. Mas os infratores estavam. E nós chegamos só no final do pico da desova. Já em 2024, chegamos no início de setembro, mas foi um pouco depois. Tivemos que replanejar, mas deu certo”, lembra Laís Ohara.

Apesar do sucesso de soltura no ano passado, o projeto foi interrompido em 2025, conforme informações do ICMBio. “As atividades de manejo e monitoramento do Projeto Tracajá não serão realizadas no ano de 2025, devido a organização da gestão e de disponibilidade de recursos financeiros, o que reflete o desafio da continuidade em projetos socioambientais. A equipe do ICMBio da Floresta Nacional do Amapá está em busca de novas estratégias e parcerias para que as atividades sejam viabilizadas no futuro”, detalham a ((o))eco.

As ameaças invisíveis

A crise climática é tampouco a única ameaça invisível que enfrentam as tartarugas dos rios amazônicos. A professora da UFAM, Marcela Magalhães, tem se debruçado sobre os efeitos do aumento de contaminantes, como agrotóxicos, remédios microplásticos, sobre as tartarugas.

Seu estudo com glifosato, agrotóxico mais comum, revela que a substância consegue entrar nos ovos e causa danos ao rim e alterações no sangue das tartarugas. “Do solo passa para dentro do ovo”, conta a pesquisadora.

Antidepressivos e anticoncepcionais diluídos na água por meio do esgoto também podem afetar os animais e provocar mudanças no controle hormonal das espécies e, no caso dos anticoncepcionais, causar até mesmo a reversão sexual durante o desenvolvimento dos filhotes ou comprometer a parte masculina de jovens com o sistema reprodutor em amadurecimento.

“São impactos invisíveis”, alerta Marcela. “O impacto do tráfico é imediato, de curto prazo. Já os impactos das mudanças climáticas e contaminantes são impactos a longo prazo, que nós só vamos ver lá na frente. Ah, estão nascendo 10 mil filhotes, mas e se forem só fêmeas?”, provoca a pesquisadora e professora da UFAM.

Fonte: O Eco

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