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ARTIGO

Criminologia Animal: o sofrimento animal como objeto da Criminologia

31 de maio de 2023
Marcelo Daidone Chalita
5 min. de leitura
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Foto: Ilustração | Freepik

Ainda que a constituição de uma criminologia verde tenha significado um avanço teórico na consideração dos animais não humanos como objeto de interesse, verifica-se que essa linha de análise ainda se afigura como insuficiente frente às concepções filosóficas que, reconhecendo nos animais não humanos a capacidade de sentir dor e de sofrerem, estendem a eles a categoria filosófica de sujeitos e lhes reconhecem uma dignidade intrínseca, não necessariamente dependente do impacto ambiental ou da comiseração humana.

Ampliando o objeto de estudo da criminologia verde para além dos danos contra a humanidade e do meio ambiente, a criminologia animal, que se propõe neste artigo, apresenta-se como sendo o estudo dos danos causados aos animais, superando o especismo e tendo a senciência e a ética animal como alicerces principais. Desse modo, a criminologia animal se desvincula da criminologia verde no momento em que o foco de estudo não é mais o dano social (apesar de ele aparecer), mas sim, o sofrimento animal a partir de uma mentalidade especista, antropocêntrica e anti-senciente.

O termo especismo se alicerça no ser humano como sendo um ser superior aos demais animais, baseando-se exclusivamente no fator espécie, e não nas capacidades, semelhanças ou vulnerabilidades que os demais seres não humanos compartilham conosco. Se são tão parecidos com os seres humanos, então por que são tratados de forma tão diferentes? Uma resposta possível e provável centra-se sobre a própria estrutura do capitalismo. Aqui, advoga-se que o desenvolvimento, manutenção e execução do capitalismo como um sistema que explora os seres humanos é, em muitos aspectos, dependente do abuso e exploração de animais. Explica-se.

A indústria animal – mais especificamente a criação de gados e ovelhas – foi não só o embrião, mas também imprescindível para a disseminação das relações sociais capitalistas em todas as partes do mundo e “a evidência histórica sugere que não só é o capitalismo dependente da acumulação primitiva cruel, mas a acumulação primitiva depende dos animais”. Marx foi claro ao justificar o processo de forçadamente retirar o campesinato da terra ao explicar que, por causa do aumento do preço da lã, seria mais lucrativo transformar as terras aráveis em pastos para ovelhas. Foi assim que o desmatamento de florestas começou nos séculos XVII e XVIII. Assim, a expropriação de pessoas que viviam na terra, foi marcada pelos lucros a serem auferidos a partir de animais. Neste sentido, a indústria animal foi o motor de arranque da acumulação primitiva, sem a qual os ganhos subsequentes para a classe dominante (a criação de um proletariado, o acesso à riqueza mineral etc.) poderiam não ter sido realizados.

Os animais e a origem do sistema fabril e industrial em geral são intrínsecos, a ponto de Henry Ford ter se inspirado na produção de carne ao idealizar o modo industrial de funcionamento da linha de montagem: “As casas de embalagem foram a primeira indústria americana a criar linhas de montagem. Incapazes de lidar com o fluxo constante de gado que chegava todos os dias, as gigantes casas de embalagem alcançaram uma forma de agilizar o processo de abate – eles inventaram a correia transportadora”.

Uma publicação de 1942, financiada por uma empresa frigorífica, dizia: “Os animais abatidos, suspensos de cabeça para baixo em uma corrente em movimento, ou transportadora, passam de trabalhador para trabalhador, cada um dos quais realiza algum passo particular no
processo. Tão eficiente este procedimento provou ser que passou a ser adotado por muitas outras indústrias, como por exemplo, na montagem de automóveis”.

Henry Ford reconheceu que a ideia para a linha de montagem de automóveis “veio, de uma forma geral, a partir das correntes suspensas que os embaladores de Chicago utilizavam no
tratamento da carne”.

É nesse contexto que todos os dias animais sencientes (que têm a mesma capacidade de sofrersentirem dor que humanos), são explorados, torturados, esquartejados, postos em câmeras de gás na chamada “morte humanizada”, inseminados artificialmente, têm seus bicos e rabos cortados, têm suas peles arrancadas enquanto vivos, têm seus filhos tirados de suas mães, entre outras atrocidades, para atingir um único fim que é a sede do capital: o lucro.

O que acontece nos abatedouros ao redor do mundo é assustador e a indústria faz questão de esconder o morticínio: por volta de 220 milhões de animais terrestres são mortos no mundo diariamente. Isso sem contar os animais marinhos, que a estimativa corre entre 2.4 e 6.3 bilhões por dia. Isso significa que algo entre 28 mil e 73 mil animais são mortos cada segundo.

Não existe “morte humanizada” quando se trata de produtos animais. Não existe nada de “humanizado” em um ambiente cruel. Não existe nada de “humanizado” quando o barulho é de dor e o chão é vermelho de sangue. Os termos como free range eggs ou bem-estar animal são uma mentira que a indústria cria por meio daquilo que o pensamento marxista nomeia fetichismo da mercadoria (o processo por meio do qual as mercadorias são imbuídas de uma vida própria, com a ocultação do trabalho que se encontra em suas).

Há, porém, uma dimensão que não se verifica nas pesquisas da criminologia verde. A dimensão do sofrimento animal e das práticas de violação da integridade, morte e imposição de sofrimento a animais não estão incluídas nos pensares da criminologia verde, muito menos da criminologia mais tradicional. A mentalidade antropocêntrica de que a humanidade é o centro do universo e que todas as outras coisas que nele existam devam ser benéficas aos seres humanos
ainda prevalece na criminologia.

É sob esse contexto que surge a necessidade de uma crítica ao que se ainda prepondera, onde criminólogos animalistas visam dar importância ao que é relevante, porém pouco abordado: o sofrimento animal como imprescindível instrumento para o desenvolvimento do capitalismo.

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