Uma vez encontrei uma amiga que me contou que a sua filha mais nova – uma menininha de apenas três anos – havia brigado com ela por uma razão que eu aprovaria. O motivo da briga foi uma barata. Minha amiga disse que ao bater numa barata com um chinelo, para matá-la, sua filhinha disse: “– Você nunca mais faça isso! Não viu que ela (a barata) já estava indo para a casa dela?” Sensacional, não é mesmo? Baratas são consideradas repugnantes e indignas de qualquer tipo de compaixão, mas aquela garotinha foi capaz de ter esse sentimento por ela. De onde veio tal compaixão? Certamente não foi com a família, ou a sociedade, que ela aprendeu isso.
Outro episódio muito interessante foi uma conversa que ocorreu entre outra menina – de três anos também – e sua mãe, a respeito do enterro de um familiar. Sua mãe me contou que ficou totalmente desconcertada diante de uma série de questões que teve início quando a menina perguntou qual seria o destino do corpo de seu avô. A partir daí houve um bombardeio de perguntas do tipo: “Se quando a gente morre fica só o corpo, isso também acontece com os animais? Se o corpo do avô seria enterrado, por que os corpos dos animais são servidos como comida?” E mais: “Para que nós possamos comer os animais, eles tinham que ser mortos, ou morriam naturalmente?” Incrível, não é mesmo?
É interessante notar que nem todas as crianças fazem perguntas desse tipo. Mas a verdade é que as que fazem tais indagações acabam, de um jeito ou de outro, recebendo respostas mentirosas ou, no mínimo, tendenciosas como: “Sim, os animais são mortos para nos servir como alimento porque estão aqui para isso; sim, eles são mortos para ‘virar comida’, mas não sofrem nada; sim, são mortos e alguns até sofrem um pouquinho, mas esse é um mal absolutamente necessário porque não podemos ter uma boa saúde com uma dieta isenta de carne e outros itens de origem animal” etc. etc.
Todos nós já temos, desde crianças, uma programaçãozinha interna que pode ser chamada de espírito, alma (ou outra denominação), a qual, posteriormente, vai mudando e se adaptando, pelo menos em parte, ao mundo que nos circunda. Essa modificação de nossa essência interior vai paulatinamente se intensificando na medida em que vamos recebendo a influência da matriz de racionalidade que constitui a realidade construída na qual vivemos. Essa aquisição de novas “lentes” – através das quais passamos a perceber e sentir nosso entorno – de certa forma obnubila essa instrução que vem de dentro, que faz parte de nossa essência. Passamos por um adestramento que faz com que determinadas perguntas não sejam mais colocadas, sob pena de parecermos ridículos e, com o tempo, até mesmo a nossa forma de pensar vai se modificando. E algumas questões que, guiadas por nossa intuição, seriam fortemente rejeitadas, passam a ser naturalizadas ou banalizadas, como por exemplo, o sofrimento dos outros.
Muitos animais com os quais convivemos vêm a nós como crianças pequenas, nos admirando, nos fazendo companhia e pedindo nossa compaixão. O que lhes damos em troca? Está cada vez mais evidente a necessidade de praticarmos um consumo ético e nos preocuparmos com a origem dos produtos que consumimos: se causam sofrimento aos animais; se exploram o trabalho de seres humanos; se geram impactos ambientais ou sociais etc. Nosso dinheiro pode alimentar cadeias muito destrutivas. Esta é uma boa orientação para a montagem da nossa mesa: que mundo estou ajudando a construir e a perpetuar por meio das minhas escolhas individuais?
Que possamos aquilatar o quanto nossas escolhas – na sociedade industrial – têm sido as piores possíveis no que tange à natureza, aos animais e a nós mesmos, seres humanos. Um fio condutor muito profícuo para uma reflexão crítica a respeito de nosso porvir no planeta é o conceito de especismo, uma vez que, a partir dele, muitas questões, cuja interdependência é pouco clara, se manifestam de maneira inequívoca. Deixemos que desperte a criança que há em cada um de nós.