De dezembro de 2009 a julho de 2010, o jornalista Haroldo Castro e seu filho Mikael Castro, antropólogo, realizam uma expedição pelo continente africano. A iniciativa Luzes da África pretende levar ao público brasileiro, às vésperas da Copa do Mundo, uma imagem positiva sobre a região.
Por Haroldo Castro
Estou cercado por todo tipo de verdes. Raízes tentam agarrar meus pés; cipós e trepadeiras se enroscam em meus braços. As plantas parecem impedir que eu entre em seu território. “Esse é um dos piores trechos da caminhada”, diz Godfrey Binayisa, ao ouvir meus sussurros de aflição. O guarda-parque continua a abrir caminho com o facão, desvendando a floresta. “Só falta meia hora para chegar ao destino.” Além da luta contra a vegetação, agora tenho outro desafio: a trilha torna-se mais íngreme. Checo o altímetro e já estamos a 2.200 metros de altitude, 350 metros acima do lugar de onde partimos. O caminho também está mais escorregadio. Agarro uma raiz que não deveria estar solta, meu sapato resvala e minha calça e minhas mãos tomam um novo banho de lama.
Mas por que enfrentar essa odisseia tropical? O nome do local explica a aventura. Estamos na Floresta Impenetrável Bwindi. Sim, o nome oficial inclui o adjetivo impenetrável. E mais, Bwindi, no idioma da tribo Bakiga, significa tenebroso. Essa selva fechada e escura guarda um dos principais tesouros de Uganda: cerca de metade da população de gorilas de montanha do mundo. É um parque nacional desde 1992 e considerado como Patrimônio Mundial desde 1994.
Completamos 2:30 horas de esforço quando, do meio do mato, surgem três vultos quase tão tenebrosos como a floresta. Um deles carrega um rifle automático AK-47. Quando vejo os outros dois homens, fico mais tranquilo: suas armas são um rádio e um GPS. Observando meu susto, Binayisa explica que eles trabalham para o parque e que saíram em busca do grupo de gorilas duas horas antes de nossa partida. Como de costume, eles foram ao local onde os animais passaram a noite anterior. Os primatas acordaram, fizeram sua primeira refeição e começaram a se movimentar em busca de outros alimentos – sua dieta vegetariana é composta por mais de 60 tipos de plantas e um adulto pode comer 20 quilos de folhas por dia. Os três pares de olhos seguiram o grupo e os guardas sabem agora exatamente onde os animais estão. Estamos prontos para vê-los.
Binayisa lembra as regras do jogo. Manter uma distância mínima de sete metros dos animais. Não fotografar com flash. Não espirrar ou tossir na direção dos primatas para que eles não sejam contaminados. Se algum gorila vier em nossa direção, não olhar diretamente nos olhos dele, baixar a cabeça e seguir as instruções dos guarda-parques. “Teremos apenas uma hora com eles”, afirma Binayisa. Deixamos a trilha e adentramos o mato impenetrável. Depois de outra caminhada exaustiva, nossa recompensa está prestes a acontecer. O guarda que lidera a fila para, ergue a cabeça e aponta para uma árvore. A uns dez metros de altura, bem encaixado entre dois galhos, um jovem gorila retira cuidadosamente tufos de musgo da casca da árvore e os mete na boca. Começa o frenesi fotográfico: apontamos nossas lentes em direção ao primata e disparamos dezenas de imagens em poucos segundos. Mas nossa presença – e até mesmo a metralhadora de cliques – não interfere na sua atividade principal: comer. Mesmo consciente de nossa presença, o animal, em nenhum momento, olha em nossa direção. É como se não existíssemos. “Os gorilas do grupo Nshongi foram habituados aos seres humanos”, diz Binayisa. “É um processo que demora dois anos, com a visita diária de guarda-parques ao mesmo grupo. Uma vez habituados, eles perdem o medo, já não nos consideram como um perigo e permitem ser observados.” No parque nacional Bwindi, 123 gorilas de montanhas foram habituados à presença humana. Estão divididos em sete grupos – seis deles podem ser visitados por turistas e um está reservado para os pesquisadores. O grupo Nshongi foi o último a ser habituado e passou a receber um máximo de oito visitantes por dia a partir de setembro de 2009.
Binayisa faz um sinal para prosseguir. A poucos metros, encontramos um dos machos adultos, o chamado silver back, dorso prateado. Ele está sentado no chão, dentro do mato e come passivamente suas folhas preferidas. Em Bwindi, o grupo Nshongi é o que possui o maior número de indivíduos – 34 animais de idades variadas. Ao contrário dos outros, o clã contem três machos adultos. “Os três dorsos prateados vivem em harmonia e sem conflitos, pois os outros dois reconhecem a liderança do mais velho”, diz um dos guardas que segue os animais há quatro anos. “É também o grupo com a maior quantidade de bebês. As oito fêmeas cuidam de oito filhotes com menos de três anos.” Esses números são muito positivos. Em 2006, a população de Nshongi era de 26 animais. Portanto, em quatro anos (o período reprodutivo de uma fêmea gorila), o crescimento foi de 30%. Binayisa explica que essa taxa não pode ser extrapolada para outros grupos, pois depende do número de fêmeas de cada bando. “Mas uma coisa é certa: a população de gorilas de montanhas em Uganda está protegida e só tem crescido nas últimas décadas.” De fato, o primeiro censo em 1987 computou 270 animais em Bwindi. Em 2003, o número passou para 320 e, em 2006, para 340. O censo de 2010 deverá revelar um número entre 360 e 370 indivíduos. Como a atração turística principal em Uganda tornou-se a observação dos gorilas – cada um dos 10 mil visitantes anuais paga a soma de 500 dólares americanos (R$ 900) – os cofres da Agência de Vida Selvagem de Uganda (Uganda Wildlife Authority) recebem alguns milhões de dólares por ano e parte dessa verba é destinada à conservação. De cada visita, nove dólares vão direto às comunidades rurais que rodeiam o parque nacional.
Foi a impenetrabilidade de Bwindi que salvou esses primatas da extinção. Durante os anos 70 do ditador Idi Amin e até 1986, o país viveu os horrores de uma guerra civil e as milícias dizimaram grande parte dos animais selvagens que viviam nos parques nacionais – para comer a carne ou vender os chifres de rinocerontes ou as presas de elefantes. O resultado dessa catástrofe social e ambiental é que uma espécie desapareceu do mapa de Uganda: o último rinoceronte foi observado em 1982. Hoje, esforços conservacionistas trazem de volta ao país um dos Big Five – os cinco animais emblemáticos africanos: elefante, búfalo, leão, leopardo e rinoceronte. Graças ao apoio do Banco Mundial e da Comunidade Europeia, quatro rinocerontes brancos (ou rinocerontes de lábios quadrados, pois eles não são de cor branca) foram adquiridos no Quênia (por 15 mil dólares americanos cada) e, em 2005, transferidos para a reserva Ziwa, no centro de Uganda. No ano seguinte, um casal foi doado pelo parque Reino Animal da Disney. “Uganda ficou mais de 20 anos sem um dos principais mamíferos africanos. Dentro de 15 anos, quando a população em Ziwa crescer e os parques estiverem seguros, os rinocerontes voltarão a povoar os parques de Uganda”, diz Angela Genade, diretora executiva do santuário Ziwa. Os primeiros resultados são alentadores e as três fêmeas já deram cria a três filhotes. Obama veio ao mundo em junho de 2009 e foi o primeiro rinoceronte nascido em território nacional, depois de quase três décadas de intervalo. A segunda cria, Augusto, nasceu de Bella em outubro de 2009. Os animais são monitorados 24 horas por dia, sete dias por semana. “Ziwa não pode permitir que nenhum de seus nove animais seja caçado”, diz Richard Ogenchan, antigo policial que se tornou guarda-parque. “Orgulho-me de proteger essa espécie tão rara. E, graças a esse trabalho, meus três filhos e meus dois sobrinhos vão à escola.”
Os ugandenses consideram que o rio Nilo Branco tem início no lago Vitória. A massa de água que sai do maior lago africano (e segundo maior do mundo) é impressionante. Para os especialistas em esporte radical, o segmento inicial do Nilo Branco é também uma mina de ouro. “Esse trecho contem dezenas de corredeiras de nível 1 a 6 e oferece um dos melhores raftings na África”, afirma Gavin Fahey, neo-zelandês, gerente das atividades de Adrift. “Ao contrário de outros rios, o Nilo aqui apresenta poucos perigos. Não há rochas traiçoeiras e o máximo que acontece é você ficar embaixo d’água durante alguns segundos.” Meu filho Mikael e eu decidimos aceitar o desafio. Depois das recomendações de segurança, entramos no bote inflável com cinco jovens voluntários americanos. Logo estamos frente à corredeira Bujagali, a segunda mais difícil do trajeto, de classe 5. O instrutor explica qual deve ser a estratégia e imergimos na água branca espumosa. Todos saímos encharcados, mas o bote consegue se manter a prumo. Uma rápida contagem confirma que não perdemos nenhum passageiro. Depois de algumas corredeiras de nível 3, intercaladas por banhos em trechos calmos do rio, temos nosso último enfrentamento. O nome da queda ilustra sua força: Silver Back, a alcunha do gorila macho dominante. As ondas laterais assustam, mas não há espaço para meia volta. Levados pela correnteza, o bote mergulha no Nilo borbulhante. Entre golfadas de água, percebo que Mikael já não está a bordo. Poucos segundos depois, uma onda gigantesca aparece ao meu lado e sua rajada me arremessa para fora do barco. Fico muitos segundos – e eles custam a passar – submergido, esperando apenas que a correnteza me leve a um lugar mais calmo e que não me puxe para baixo. Finalmente, consigo levantar a cabeça, abrir a boca e, ufa, respirar. Pelo menos não tenho sede: acabo de beber dois bons goles de água. Enquanto isso, Mikael, que caiu logo no início do Silver Back, passa por baixo do bote e aparece do outro lado da cascata. Para quem queria uma experiência cheia de adrenalina, o pedido foi atendido! Infelizmente, Silver Back tem seus dias contados. A construtora italiana Salini – a mesma que edifica uma barragem no rio Omo, na Etiópia, causando controvérsias sócio-ambientais – também ergue uma hidrelétrica no Nilo. Todas as corredeiras que passamos deixarão de existir em apenas um ano, pois a área será inundada. “Já desenhamos os novos percursos, depois da barragem. Não vamos parar de fazer rafting”, afirma Gavin, com otimismo.
Centenas de quilômetros a frente, o Nilo torna-se, definitivamente, branco de espuma. O rio é forçado a passar por uma garganta de apenas seis metros de largura. A quantidade de água pressionada em um espaço tão estreito cria a cascata Murchison, de 45 metros de altura, considerada uma das mais potentes do mundo. A cada segundo, mais de 300 mil litros explodem entre as rochas, criando uma bruma constante. Desde que o explorador britânico Samuel Baker a identificou em 1863, a cascata Murchison passou a simbolizar o inexplorado do continente africano. Líderes mundiais, como Winston Churchill e o presidente americano Theodore Roosevelt, visitaram o local há um século. Hollywood tornou as cascatas famosas quando, em 1951, trouxe Humphrey Bogart e Katherine Hepburn para filmar o clássico “A Rainha Africana”. Mas as décadas de terror de 70 e 80 devastaram a biodiversidade ao redor de Murchison. Dos 15 mil elefantes que existiam antes da guerra, poucas dúzias conseguiram sobreviver ao massacre. Duas décadas depois, o maior parque nacional de Uganda floresce novamente e é um dos melhores exemplos de safári na região equatorial. Embora aqui os animais possam ser avistados com menos facilidade do que nas savanas abertas do Quênia e da Tanzânia, a vegetação exuberante valoriza cada encontro fortuito. O parque Murchison também acolhe uma espécie nativa, o cob de Uganda: o antílope está presente até no escudo nacional.
Ao sul do parque nacional Murchison, visitamos a floresta Budongo. Esse pedaço virgem de mata tropical abriga cerca de 600 chimpanzés. Um grupo de 40 primatas foi habituado à presença humana e visitantes podem acompanhar as brincadeiras dos chimpanzés diariamente. Bem mais barulhentos e movimentados que os gorilas, os chimpanzés criam um espetáculo particular. As diversas vocalizações enchem a floresta de vida e as correrias de galho em galho, por cima de nossas cabeças, produzem um show espontâneo que existe em raras reservas do planeta.
Mesmo se Uganda ainda tem alguns problemas sérios para resolver – a corrupção é um deles – o país tem atraído investimentos externos nas últimas duas décadas, graças a uma razoável estabilidade política. Os horrores da ditadura e da guerra civil fazem parte do passado e o governo busca mostrar uma nova imagem, a de um país hospitaleiro e repleto de tesouros naturais. Uganda pode ainda não figurar nos principais itinerários de turismo de natureza, mas seu portfólio de atividades coloca o país como um dos mais ricos da África do Leste. Além das belezas do Nilo e dos tradicionais Big Five, o país oferece a experiência espetacular e inesquecível de estar frente a frente com os gorilas, uma espécie criticamente ameaçada, mas que volta hoje a povoar as florestas impenetráveis de Uganda.
Fonte: Época