Para a escritora chinesa Kwong Kuen Shan, gatos são como filósofos: serenos, só fazem o que querem e enxergam o tempo sem o passado e o futuro. “O que importa para eles é o aqui e agora”, diz ela. Pensador de esquina no bairro da Federação, estudioso inconsciente do sofrimento humano, versado em filosofia da dor e da saudade, João Francisco Santos, 78 anos, contesta, ainda que sem querer, a tese da especialista.
Para João, gatos são, na verdade, excelentes profetas. Inclusive, com uma curiosa capacidade: a de pressentir a morte e a de enxergar os mortos. Coveiro mais antigo do Campo Santo, ele cuida de 45 bichanos que se esgueiram pelas campas e velam túmulos do mais antigo cemitério de Salvador. Com a autoridade de quem vive na eterna antítese de cuidar da morte dos seus pares e da vida dos seus gatos, seu João dispara:
“Os gatos adivinham o futuro. Sabem se você está doente, se está perto de morrer”, acredita o coveiro, que apesar de aposentado do cemitério há 19 anos, continua trabalhando todos os dias no mesmo local. Faz isso por dois motivos: servir aos clientes antigos e, claro, cuidar dos gatos, os quais chama um a um pelo nome.
Para quem não conhece seu João de perto, talvez seja difícil entender o motivo de tanto amor pelos animais. Mas a explicação pode estar no próprio ofício que escolheu. Só há uma forma de suportar a morte todos os dias: estabelecendo uma relação íntima com o que está vivo. “Esses gatos são minha vida. Cuido deles como fiz com meus filhos um dia. Estão todos crescidos”, diz João, pai de sete filhos, oito netos e três bisnetos.
Gatinho sem vida
Os enterros emocionados já não o chocam mais. Basta, porém, morrer um gato, para o chão se abrir. O homem que enterra corpos humanos há 54 anos não suporta ver um gatinho sem vida. “Se eu chegar, chamar para dar comida e não encontrar um deles, já fico doido. Quando morre um é mesmo que tirar um pedaço de mim”, admite. Aconteceu com Branquinha, a matriarca de todos os gatos brancos, maioria no cemitério.
Todos os dias, Branquinha esperava João na porta de entrada onde ocorrem os velórios. “Era sexta-feira e naquele dia, eu não encontrei. Mataram ela. Acharam morta dentro de um córrego que tem ali”, lembra. “João era só tristeza. Ficou três dias sem comer”, confirmou um dos seguranças do Campo Santo. “Mas quem fez isso vai pagar, né? Não vai ficar impune”, acredita o coveiro, sem saber que no Egito antigo quem matasse um gato era condenado à morte.
Mas, se a Idade Média trouxe o preconceito com os bichanos, seu João acredita na lei do retorno. “Tem gente que implica sem motivo. Tem gente que dá veneno aos gatos. Daqui a pouco aparece com uma dor e o médico não descobre o que é. Ele tá colhendo o que plantou”. E Charmoso? A história de Charmoso teve um final bem diferente. Apareceu com um hematoma na perna. Provavelmente resultado da agressão de alguém. O próprio João o levou para o veterinário.
Charmoso ficou internado por dez dias. Quem pagou a conta? “Gastei R$ 2,5 mil. Deixei de comprar minhas coisas, mas não deixei ele morrer. É uma vida, né?”, repetiu. Nas cinco décadas dentro do cemitério, João nunca viu uma alma que seja perambulando. Ele próprio acredita na existência de espíritos, mas acha que os gatos não os deixam assombrar pela área.
“Os gatos afastam espíritos ruins. Eles enxergam coisas que nosso olho não vê”. Aos que demonstram algum preconceito com a presença dos bichanos, seu João garante que eles afastam também tudo o que é de ruim. “Rato e barata não ficam. São animais muito limpos. Gato é uma limpeza em benefício da saúde de todo mundo. Muita gente morre de leptospirose”, alerta.
Ilustres
Além dos seus bichanos e de gente anônima, João dos Gatos é acostumado a enterrar pessoas ilustres e de famílias tradicionais. Do ex-senador ACM ao ex-prefeito Clériston Andrade, do ex-deputado Luís Eduardo Magalhães à educadora feminista Henriqueta Martins Catharino, ele participou dos grandes sepultamentos do Campo Santo.
Inclusive dos últimos, do ex-empresário Norberto Odebrecht e, mais recente, do padre Gaspar Sadoc. “O maior enterro que vi foi o de ACM. Veio gente até do exterior”, lembra. Hoje, depois de muitos anos de serviço, João consegue passar incólume às dores dos familiares. “A gente fica calejado. Já vi muita gente chorando. Depois do enterro, vou atrás dos meus gatos e esqueço. A vida segue, né?”. Até porque o próprio João já esteve entre a vida e a morte.
Na véspera do Dia de Finados de 1987, quase virou a noite no cemitério preparando tudo para os visitantes. No dia seguinte, atrasado para o trabalho, resolveu pegar um táxi. Morava perto, na Avenida Cardeal da Silva. No início da Rua Caetano Moura, curva da Escola Politécnica, o Fusca em que estava perdeu o controle e bateu de lado com a frente de um ônibus.
O coveiro mais antigo do Campo Santo viu a morte de perto no dia em que ela é homenageada. “Olha, eu fiquei entre a vida e a morte. Perdi muito sangue. Nasci de novo”. A vida de João, enfim, é assim: trabalha com os mortos, cuida de bichos de sete vidas e renasceu em pleno Dia de Finados. Com essa incauta trajetória, teria ele medo de morrer? “Medo de morrer? Quem tem medo de morrer é porque nunca viveu”, filosofou.
Fonte: iBahia