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RECUPERAÇÃO

Corrente, gaiola e fogo: a realidade de oito bichos vítimas de crimes ambientais

Inspirados pela iniciativa do Abril Laranja, reunimos histórias de animais que foram resgatados, cuidados e reabilitados por organizações especializadas.

29 de abril de 2023
14 min. de leitura
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Entenda como os crimes ambientais estão associados aos maus-tratos aos animais silvestres — Foto: Instituto NEX/ Instituto Tamanduá/ CETAS Manaus/ CETRAS São Paulo/ Divulgação

Com quase 130 mil espécies espalhadas em seus oito biomas, o Brasil é reconhecido e valorizado mundialmente por sua biodiversidade, superando até mesmo grandes potências. Os números são, sim, motivo de comemoração e orgulho, não fosse por um fator tão relevante quanto eles: o país também ganha destaque pelo volume de exploração de seus recursos naturais.

Nos últimos anos, o desmatamento, as queimadas e o tráfico ilegal estiveram presentes em debates internacionais, alinhados com projetos de conscientização e preservação ambiental. O que você talvez não saiba é que, para além dos prejuízos à fauna – mudança no habitat e no clima e o desequilíbrio ambiental -, as ações humanas também estão ligadas aos maus-tratos.

Apesar do termo ser comumente associado aos animais domésticos, os crimes ambientais criam um cenário de violência para as espécies silvestres, que são capturadas da natureza e mantidas em cativeiro, onde são mutiladas, vendidas e, nos casos mais graves, mortas.

Neste contexto, aliado à iniciativa da Sociedade Americana para a Prevenção da Crueldade a Animais (ASPCA), que reserva o quarto do mês do ano para promover debates sobre os maus-tratos à fauna, o Vida de Bicho traz oito casos reais de indivíduos resgatados em cenas de violência que, agora, ganham uma nova chance graças às instituições ligadas à causa animal.

Vovó Elza – Instituto Libio

Vovó Elza recebeu este nome em homenagem a avó de Raquel Machado, fundadora do mantenedouro — Foto: Instituto Libio/ Divulgação

Quando a Vovó Elza chegou ao Instituto Libio, localizado em Porto Feliz, interior de São Paulo, há dois anos, foi um choque para a equipe. O macaco-prego de 42 anos viveu grande parte da vida acorrentado, sendo alimentado com arroz e pão, alimentos que não fazem parte da dieta da espécie, e vacinado contra raiva, imunizante que não deve ser usado em primatas não-humanos pelos riscos à saúde.

“Ela chegou magra e extremamente debilitada, precisou ficar dez dias internada no hospital veterinário. Realizamos a introdução proteica para recuperá-la, alguns pelos voltaram, mas nem todos, por conta dos danos causados pela corrente. Ela é medrosa, submissa e sofreu muito, não sabia viver em grupo”, relembra Raquel Machado, ativista e fundadora do mantenedor.

Apesar dos esforços da equipe e da saúde controlada da Vovó, as sequelas causadas pelos maus-tratos impossibilitam sua volta à natureza. Além de estar no fim da vida, superando em dois anos a expectativa da espécie, a maneira como foi criada não a deu oportunidade de aprender e desenvolver seus instintos naturais, essenciais para garantir sua sobrevivência em vida livre.

Trinta-réis-de-bando – Instituto de Pesquisa e Reabilitação de Animais Marinhos (IPRAM)

O trinta-réis-de-bando atendido pelo IPRA apresentava debilidade e incapacidade de vôo — Foto: Leandro Egert/ IPRA

Em março de 2023, especialistas do IPRAM, no Espírito Santo, receberam um trinta-réis-de-bando que teve as penas de suas asas cortadas, impossibilitando a sua capacidade de voo.

O animal também estava desnutrido, desidratado e com princípios de infecção. Após o tratamento e o protocolo para lidar com as questões de saúde, os especialistas realizaram um transplante de penas, técnica conhecida como imping, em inglês.

“Temos um banco de penas, doados por aves da mesma espécie que vieram a óbito. Nós realizamos a união pena por pena, com supercola, e uma guia interna de madeira que une a parte cortada com a doada”, explica Leandro Egert, mestre em Ciências Veterinárias do Instituto.

A técnica visa diminuir o tempo de cativeiro e possibilitar a soltura precoce. O objetivo é que o tratamento siga até 2024, quando o animal deve ser reintroduzido na natureza.

“É comum, mesmo em aves domésticas, o corte da asa para evitar a fuga. Porém, o que muitos não sabem, é que a base da pena possui inervações e são irrigadas por sangue, logo, se arrancadas, causam dor, sangramento e, posteriormente, a lesão pode servir de porta de entrada para microrganismos”, alerta o médico-veterinário.

Vênus – Instituto de Pesquisa e Conservação de Tamanduás no Brasil

Vênus perdeu sua mãe nos incêndios criminosos que ocorreram em 2020, no Pantanal — Foto: Flavia Miranda/ Arquivo Pessoal

Vênus fez parte do projeto Órfãos do Fogo, iniciativa do Instituto Tamanduá, que surgiu da necessidade de cuidar e reabilitar filhotes de tamanduá-bandeira que perderam suas mães, vítimas dos incêndios criminosos no Pantanal, em 2020.

Segundo Flavia Miranda, médica-veterinária e fundadora do Instituto, a espécie é facilmente acometida pelo fogo, visto que o pelo grosso atrai as chamas e a lentidão dificulta a fuga. Na época, diversas mortes de fêmeas – algumas conseguiram fugir, mas foram atropeladas no caminho – assustou a equipe. Foram mais de 20 filhotes resgatados pela Polícia Ambiental, um número altíssimo para a média.

Quando foi resgatada, Vênus ainda estava presa ao cordão umbilical. Foi no Centro de Recuperação de Animais Silvestres, em Campo Grande, onde recebeu os primeiros socorros até ser encaminhada para a ONG para realizar o protocolo nutricional e ser reabilitada.

“Pouco depois de completar seu primeiro ano, ela bateu a marca dos 20 kg, e começamos a pensar na sua soltura. Coletamos várias amostras biológicas para monitorar sua saúde e, quando estava apta, a liberamos na natureza com um rádio colar, aparelho que nos possibilita acompanhar seu desenvolvimento”, adiciona Flávia.

Cardeal – Divisão da Fauna Silvestre

O animal conseguiu se recuperar sem sequelas e foi solto após quatro meses — Foto: CeMaCAS/ Divulgação

Um dos casos atendidos pelo Centro de Manejo e Conservação de Animais Silvestres (CeMaCAS), em São Paulo, se tratava de um cardeal, ave que chama atenção pela coloração vermelha que domina o topo da cabeça, rosto e parte do peito.

Apesar de não ter identificado a idade exata do bicho, a equipe constatou que se tratava de um indivíduo jovem, capturado de um cativeiro ilegal pela Guarda Civil Ambiental (GCM), em São Paulo.

“Ele apresentava perda de tecido adiposo e músculo ósseo, desidratação, inchaço nas pálpebras e úlcera de córnea”, aponta a Divisão da Fauna Silvestre da Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente de São Paulo (SVMA), em nota enviada pela assessoria.

Para economizar espaço e investimento, mantenedores ilegais costumam alocar um número maior de animais do que o orientado para cada recinto. O quadro apresentado pelo cardeal costuma estar ligado ao excesso de bichos em uma mesma gaiola e ao uso de galhos inadequados no local.

“A alimentação assistida associada à terapia de suporte e tratamento oftalmológico foi o suficiente para tratá-lo sem deixar sequelas. Após tratamento clínico e a reabilitação de 120 dias, ele foi repatriado, retornando ao seu local de origem, o Rio Grande do Sul.”

Amanaci – Instituto No Extinction (NEX)

Amanaci tem aproximadamente 6 anos. Seu filhote, Apoena, tem 1 ano e 1 mês — Foto: Instituto NEX/ Divulgação

Outra vítima dos incêndios pantaneiros foi Amanaci, onça-pintada que chegou com a saúde bastante debilitada ao Instituto NEX, um criadouro científico para fins de conservação, localizado em Corumbá de Goiás, em 2020. O felino apresentava queimaduras severas na região abdominal e nas quatro patas, com ossos e tendões expostos.

O tratamento de Amanaci incluiu estratégias pioneiras, como a aplicação de células-tronco e sessões de laserterapia por quatro meses. Apesar dos esforços para recuperar as lesões, o animal perdeu as almofadas das patas, os tendões expositores e algumas falanges.

“As sequelas permanentes nos membros inferiores a impossibilita de usar suas guerras e, consequentemente, de voltar para a natureza. Contudo, graças à reprodução genética, Apoena, seu filhote, está sendo treinado para ser reintroduzido no mesmo local onde sua mãe foi resgatada, no Pantanal”, comemora Daniela Gianni, coordenadora do Instituto NEX.

Blue – Santuário Rancho dos Gnomos

A espécie de Blue é considerada extinta da natureza — Foto: Biga Pessoa/ Santuário Rancho dos Gnomos

Blue, arara vítima do comércio ilegal, foi resgatado pela Polícia Ambiental e levado para a Associação Santuário Ecológico Rancho dos Gnomos (ASERG), localizado em Cotia (SP), onde os bichos oriundos de crimes ambientais são cuidados e recuperados.

Estima-se que a ave passou cerca de 18 anos presa em uma gaiola, tempo que representa 36% de sua expectativa de vida. Apesar de ter se recuperado, o animal seguiu com sequelas físicas e, por isso, não pode ser reintroduzido à natureza.

“O Blue chegou com desidratação e subnutrição severa, infestação de verminose e mutilação no tendão da asa. Ele recebeu o atendimento veterinário especializado, mas, infelizmente, não é possível reintroduzi-lo. O corte do tendão o proibia de voar para sempre, independente do seu esforço”, esclarece Silvia Pompeu, ativista da causa animal e fundadora da ONG.

Papagaio-verdadeiro – Centro de Recuperação de Animais Silvestres de São Paulo (CRAS-SP)

Os 17 papagaios resgatados foram recuperados e já estão em vida livre — Foto: Lilian Sayuri/ Arquivo Pessoal

“Nós recebemos cerca de 10 mil animais por ano, são quase 700 por mês. Evitamos dar nomes para não humanizá-los. Nosso objetivo é devolver as características selvagens do animal para enviá-lo para um programa de soltura”, elucida Lilian Sayuri, diretora técnica e médica-veterinária do CRAS-SP.

Um dos últimos casos de sucesso do centro envolveu 17 papagaios filhotes, que tinham pouco menos de um mês de vida. Os animais foram resgatados pela Polícia Rodoviária Militar Ambiental em abordagem a um veículo de um reincidente no tráfico de animais silvestres.

“Os papagaios fazem seus ninhos nos troncos de árvore. É preciso quebrá-la para retirar os filhotes. É violento, eles precisam ser cuidados pelos pais. Além disso, os bebês são deixados amontoados no porta-mala, escondidos, e com fome. Quando não são vendidos, a situação fica ainda pior.”

A alimentação, contrariando as recomendações veterinárias, costuma ser uma papa quente de fubá, que queima o pescoço das aves. É comum vê-las desnutridas, desidratadas e com falhas nos pelos causados pelo estresse, como foi o caso dos filhotes resgatados.

Apesar do cenário, a especialista comemora: “Eles tiveram a sorte de serem apreendidos antes de serem comprados ilegalmente. Eles poderiam ter passado décadas presos em gaiolas, sendo impossibilitados de voar e cuidados de forma inadequada”.

Ao todo, foram cinco meses entre o resgate, o atendimento médico, o treinamento físico e comportamental e o momento de soltura em zonas de aclimatação. Neste momento, os recintos ficam abertos e cada papagaio pode sair no seu tempo para explorar a área e ganhar liberdade.

Zeca – Centros de Triagem de Animais Silvestres de Manaus (CETAS-MA)

Zeca desenvolveu escoliose irreversível por ter sido mantido em uma gaiola pequena por anos — Foto: CETAS Manaus/ Divulgação

Apesar de não ser tão comum no Brasil, várias famílias ainda sonham em ter um macaco como pet. Quando filhotes, além de fofos e dóceis, o manejo costuma ser mais fácil. Porém, à medida em que crescem, o comportamento e as demandas mudam. Se os responsáveis não se adaptam para atender suas necessidades básicas, estão, sim, cometendo crime de maus-tratos.

Zeca, por exemplo, chegou ao Centro de Tiagem de Manaus (AM) com escoliose acentuada ocasionada pela condição em que era mantido por seus antigos responsáveis, uma gaiola de um metro cúbico, tamanho menor do que o recomendado. Além disso, também apresentava comportamento esteriotipado, alopecia e magreza excessiva.

“No início, o deixamos em um local com 8 metros cúbicos. Ele ficou por algum tempo tateando o ar, inseguro de se movimentar, como se estivesse descobrindo naquele momento que o mundo espacial era maior que aquele onde vivia”, relembra a bióloga Natália Lima, chefe do Núcleo de Apoio ao CETAS.

Zeca permaneceu no Centro por alguns meses para ganhar peso e aprender a se movimentar melhor. Infelizmente, a triagem indicou falta de condições físicas e comportamentais para retornar à natureza. Atualmente, ele vive em um Mantenedor de Fauna Silvestre registrado pelo Ibama.

Fonte: Vida de Bicho

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