Um dos mais respeitados cientistas climáticos do mundo, Carlos Nobre dedica-se há décadas ao estudo da Amazônia e das mudanças climáticas. Pesquisador sênior do Instituto de Estudos Avançados da USP e copresidente do Painel Científico para a Amazônia, ele foi o primeiro a alertar para o risco de a Floresta Amazônica se tornar uma savana. Nesta entrevista, Nobre alerta que a humanidade vive uma corrida contra o tempo: com a temperatura global já tendo ultrapassado 1,5°C acima dos níveis pré-industriais, o cientista traça cenários sombrios — e aponta a bioeconomia como um camininho que pode salvar a Amazônia e o planeta.
O senhor afirma que a humanidade vive o maior desafio de sua história. Em que se constitui o desafio?
Nós corremos o maior risco que o planeta já enfrentou desde que existimos como civilização. Por quase dois anos, a temperatura passou de 1,5°C acima do período pré-industrial. A última vez que houve uma crise climática desse nível foi no último período interglacial, há 120 mil a 130 mil anos. Só existiam alguns milhões de humanos então, na África equatorial. Era um fenômeno natural.
Agora esse aquecimento é totalmente responsabilidade nossa. Jogamos gases de efeito estufa na atmosfera com a queima de combustíveis fósseis, o desmatamento, a agropecuária, a indústria, resíduos. É o Antropoceno.
Por que esse aumento é tão perigoso?
O máximo que reduziremos até 2030 nas emissões de gases do efeito estufa será 3%. Se fizermos isso e só zerarmos as emissões em 2050, vamos passar de 2°. Nesse nível, ondas de calor, chuvas excessivas, secas, incêndios florestais — acontecerão com mais frequência.
Estamos próximos do ponto de não retorno da Amazônia?
Muito próximos. Em 40 a 45 anos, a estação seca já se prolongou em quatro a cinco semanas. Se continuar assim, em duas ou três décadas, teremos seis meses de estação seca. Não se mantém floresta nessas condições. Na década de 1990, a Amazônia removia até 1,5 bilhão de toneladas de gás carbônico por ano. Agora está na faixa de 200 a 300 milhões de toneladas. Antes, tínhamos uma seca severa a cada 20 anos. Agora tivemos quatro secas super severas: 2005, 2010, 2015-2016 e a maior seca da história da Amazônia em 2023-2024. No ano passado tivemos recorde de fogo na floresta. Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostraram que mais de 85% dos incêndios foram causados por humanos. Como o desmatamento caiu muito — mais de 50% de redução em 2023 e 2024 — agora o crime organizado está usando o fogo para desmatar.
Quais seriam as maiores oportunidades de transformação no Brasil?
O Brasil tem a maior biodiversidade do mundo. De 18% a 20% de todas as espécies conhecidas estão nos biomas brasileiros. Mas só 0,4% do PIB brasileiro vem de produtos da biodiversidade amazônica. A grande oportunidade do Brasil é uma nova bioeconomia da sociobiodiversidade. Valorizar nossa biodiversidade, manter nossos biomas, usar modernas tecnologias. Temos condição de restaurar a Amazônia, o Cerrado.
Não basta manter o que temos, precisa restaurar?
Restaurar! O governo brasileiro lançou na COP28 o Arco da Restauração: restaurar 240 mil km² de todo o sul da Amazônia. Doações para comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas. Empréstimo de 1% de juros ao ano para o setor privado fazer grande restauração. Hoje, restaurando a floresta, você ganha muito mais que pecuária ou soja, pelo valor do mercado de carbono.
Por que é tão difícil aplicar essas questões na prática?
Globalmente, o setor econômico mais negacionista sobre mudança climática é o agronegócio. No Brasil também. Esse setor quer continuar escondendo. Ele não quer admitir que, se continuar assim, até ele vai ser muito prejudicado. Se passar dos pontos de não retorno, o Brasil vai deixar de ser um grande produtor agrícola. Mais de 50% do Cerrado vai virar Caatinga, com produtividade baixa. Metade da Caatinga vira semideserto. A Amazônia vai ficar uma savana super degradada. Precisamos convencê-los que o risco climático é muito grande para eles.
O que esperar da COP30?
No G20 no Rio, o presidente Lula brilhantemente disse que todos os países têm que chegar a emissões líquidas zero até 2040, não mais 2045. Que a COP30 seja onde se fale: vamos zerar as emissões em 2040. O embaixador André Corrêa do Lago está trazendo o desafio de conseguir o Fundo Verde Clima de US$ 1,3 trilhão. Esse é um desafio global. E convencer a China, que é o maior emissor hoje, a liderar essa busca. China, Brasil, Índia, Rússia, países europeus têm que acelerar.
Teria algum motivo para otimismo?
Vejo otimismo porque os jovens do mundo inteiro estão muito preocupados. Eu, vivendo 85-90 anos num país tropical, vou experimentar 15-20 ondas de calor. Um bebê que nasce agora, se a temperatura passar de 2°C, vivendo 90 anos, vai experimentar 60-80 ondas de calor.
Se atingirmos 2,5°C até 2050, explodiremos vários pontos de não retorno. Acelera o descongelamento do permafrost (solo congelado) da Sibéria, norte do Canadá, Alasca. Até 2100, vamos jogar mais de 200 bilhões de toneladas do permafrost – principalmente metano. Só a Amazônia e o permafrost vão para 500 bilhões de toneladas. Impossível baixar a temperatura depois. Podemos chegar a 3-4ºC em 2100, o que torna toda a região equatorial inabitável. O Rio de Janeiro fica inabitável por 120-150 dias ao ano. Se chegamos a 3-4°C em 2100, começamos a liberar metano do fundo dos oceanos. Se isso acontecer, chegamos a 8-10°C em 2150. Só o Polo Norte, Polo Sul e topo dos Alpes, Andes e Himalaias serão habitáveis.
Tivemos seis extinções em massa de espécies. Todas foram fenômenos naturais. Essa seria a primeira extinção em massa causada por uma espécie.
Fonte: O Globo