Em 1997, uma vasta área de floresta tropical ao sudeste da Ásia foi queimada por completo para abrir caminho para plantações de óleo de palma. Acredita-se que uma combinação de desmatamento, queimadas florestais e secas forçou centenas de morcegos frugívoros a saírem de seus habitats naturais em direção a hortas de frutas, próximas a criações intensivas de suínos. Essas condições levaram ao surgimento do vírus Nipah, que se alastrou dos morcegos infectados para os porcos, e dos porcos para seus criadores. Nos dois anos seguintes, a doença matou mais de 100 pessoas. Esse fato lamentável deveria ter servido como um alerta.
Hoje, 20 anos depois, estamos enfrentando uma crise de saúde de uma escala completamente diferente. O novo coronavírus causou a maior crise sanitária, social e econômica já registrada.
Vimos o surgimento de muitas doenças ao longo dos anos – como a Zika, Aids, Sars e Ebola – e, embora sejam bem diferentes à primeira vista, todas se originaram em populações animais sob condições de severa pressão ambiental. Essas doenças ilustram que nosso comportamento destrutivo em relação à natureza está colocando nossa saúde em risco – uma dura realidade que há décadas ignoramos coletivamente. Pesquisas indicam que a atividade humana é a causa da maioria das novas doenças contagiosas.
O transporte inadequado, o consumo e o comércio de espécies selvagens ameaçadas de extinção são apenas alguns exemplos de como nossa relação prejudicial com a natureza está afetando a saúde humana. Em muitos países, animais selvagens são capturados e trazidos vivos para serem vendidos no mercado. Entretanto, se não forem bem administrados e regulamentados, esses mercados podem representar um risco significativo para a vida humana, a vida selvagem e a pecuária, trazendo espécies – muitas ameaçadas de extinção – para terem contato com outros animais, selvagens e domesticados, e pessoas, criando assim condições para a disseminação de doenças.
O fortalecimento e a efetiva implantação de uma regulamentação, o aprimoramento da segurança alimentar, o fim do comércio ilegal e impraticável da vida selvagem, e o oferecimento de alternativas de sustento para reduzir o consumo da vida selvagem em todo lugar são passos fundamentais para ajudar a prevenir o surgimento de doenças zoonóticas no futuro. Para tanto, é encorajador perceber algum progresso nos últimos meses: em Fevereiro, a China anunciou o banimento temporário do comércio e consumo de animais selvagens, e avalia torná-lo permanente; enquanto o Vietnam sinalizou que poderá tomar providências semelhantes para ajudar no controle da transmissão de doenças e prevenir futuros surtos.
Embora agir no âmbito do mercado ilegal e desregulado de espécies selvagens ameaçadas de extinção seja importante, não podemos cometer o erro de achar que é o suficiente. Devemos também resolver com urgência questões estruturais que impulsionam a destruição da natureza.
É nosso dever reconhecer que, atualmente, o modo como produzimos e consumimos os alimentos e a negligência gritante com o meio ambiente, de modo mais amplo, levou a natureza ao limite. Houve uma redução da natureza de forma global, em velocidades inéditas na história da humanidade, e essa situação aumenta nossa vulnerabilidade a novas doenças, como resultado principalmente de mudanças no uso do solo por meio de atividades como o desmatamento e a intensificação da agricultura e pecuária. Esses surtos de doenças são manifestações da nossa relação prejudicial e desequilibrada com a natureza.
É preocupante que apesar de a Covid-19 trazer mais uma razão para proteger e preservar a natureza, vemos o contrário acontecer na realidade. Do grande rio Mekong até a Amazônia ou Madagascar, surgem relatos alarmantes do aumento da caça, desmatamento ilegal e queimadas, ao mesmo tempo em que muitos países se engajam em retrocessos precipitados na legislação ambiental e cortam recursos para fundos de conservação do meio ambiente. E tudo acontece no momento em que mais precisamos.
Enquanto o mundo sai da crise, é crucial que governos restaurem ecossistemas e direcionem suas economias para um caminho sustentável se quisermos reduzir nossa vulnerabilidade às ameaças à saúde.
Precisamos adotar uma recuperação verde, justa e saudável e começar uma transformação mais ampla em direção a um modelo que valoriza a natureza como fundamento para uma sociedade saudável e uma economia eficiente e igualitária. Essa transformação significa adotar práticas mais sustentáveis, tais como a agricultura e dietas regenerativas e diversificadas, a criação sustentável de animais, os espaços urbanos verdes e as formas de energia limpa.
Já está comprovado que ignorar essas práticas e tentar economizar dinheiro negligenciando a proteção ambiental, os sistemas de saúde e as redes de proteção social são comportamentos de uma falsa economia. No futuro, a conta vai pesar no bolso.
A Conferência da ONU sobre Biodiversidade, prevista para setembro, traz a primeira oportunidade para que líderes mundiais sinalizem apoio a uma nova relação com o meio ambiente. Esperamos que se comprometam e agilizem as providências ao longo do próximo ano, quando deverão tomar decisões críticas sobre meio ambiente, clima e desenvolvimento. Em conjunto, tais decisões representam uma oportunidade imperdível de assegurar um novo acordo para as pessoas e a natureza em busca de um caminho de recuperação até o fim desta década, além de proteger a saúde humana e os meios de subsistência a longo prazo.
Reequilibrar nossa relação com a natureza irá exigir esforço coletivo e determinação. Porém, criará um futuro mais saudável e próspero para o planeta e para a humanidade, e nos colocará em uma posição mais vantajosa para evitar a próxima pandemia. Com certeza, é um esforço que todos devem estar dispostos a fazer.
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