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Coração selvagem

10 de agosto de 2017
4 min. de leitura
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Reprodução | @MPDRUMOND

O cantor do exílio, poeta e compositor latino americano que se tornou símbolo de toda uma geração, agora é um mito. Refugiado perpétuo do mundo, longe dos palcos e perto de si mesmo, ele renunciou à carreira musical e à vida em sociedade para buscar, na solidão da errância, a sua verdade mais profunda. O homem que cantara o amor, os dramas sociais, o estigma do partir, o lugar que não existe, as inquietações humanas, os mistérios da alma e a paixão que mora na filosofia passou a ser um vivo retrato na parede da memória. Foi assim, sob a adversidade de uma época de mordaças e silêncios, que a obra do artista encontrou solo fértil para florescer.
Selvagem como um animal acuado, seu coração partido de desenganos nunca se cansou de amar. É impossível deixar de lembrar alguns dos versos seus: “Não preciso que me digam de que lado nasce o sol, porque bate lá meu coração”; “A minha alucinação é suportar o dia-a-dia e meu delírio é a experiência com coisas reais”; “Se me der vontade de ir embora, vida dentro mundo afora, meu amor não vá chorar…”; “Não há pranto que apague dos meus olhos o clarão e nem metrópole que eu não veja o luar do sertão”. Em seu canto o medo esvanece e se transfigura na coragem de prosseguir: “Quando estou sob as luzes não tenho medo de nada, e a face oculta da lua – que é minha – aparece iluminada”.
A simbologia dos animais também está presente em muitas de suas canções. Assim como Poe, o poeta louco de “O Corvo”, o cantor transeunte perguntava ao passarinho, assum preto, até concluir que o passado ficou para trás, qual velha roupa colorida que não nos serve mais. Ele foi Populus, o escravo indiferente que trabalha e, por presente, tem migalhas sobre o chão. Também foi o cão dos humilhados do parque, o cachorro ligeiro da saudade que não cessa, ele foi o galo das longínquas noites e quintais, o boi que morreu lá no Piauí, o rinoceronte mais decente do que essa gente demente do ocidente tão cristão… Por vezes era alegre como um rio, um bicho um bando de pardais… Outras vezes sentia-se uma fera animal ferido, no dia do caçador.
Suas composições mais inspiradas, privilégio dos anos passados presentes e vividos entre o sonho e o som, têm um lugar cativo na música popular brasileira. Como não se emocionar diante da imagem poética das paralelas dos pneus na água das ruas, como duas estradas nuas em que foges do que é teu? Como negar a perversa juventude de um coração que só entende o que é cruel, o que é paixão? Como não ouvir, desesperadamente, o seu grito em português? Como não se convencer que viver é melhor que sonhar e que o amor é uma coisa boa? Como permanecer indiferente ao inesquecível refrão hippie composto no clamor mágico dos anos 70? “Amar e mudar as coisas, amar e mudar as coisas me interessa mais”.
Autor implícito e personagem, o artista soube projetar em sua obra o drama de cada um de nós. A mesma estrada, na encruzilhada dos destinos, abre-se para a consagração ou para a solitude. Ainda moço para tanta tristeza, ele não morreu jovem nalguma curva do caminho ou num punhal de amor traído. Um dia teve a visão das velas de Mucuripe e quis, no tempo restituído, recuperar tudo outra vez: “Viver as coisas novas que também são boas, o amor/humor das praças cheias de pessoas…” Ele foi assim, sempre marcado pelo signo do não-pertencimento: seu primeiro exílio, territorial e geográfico passou a ser, na maturidade, exílio psicológico e metafísico, mas sem nunca perder a esperança: “Ora direis, ouvir estrelas, certo perdeste o senso. Eu vos direi, no entanto: enquanto houve espaço, corpo, tempo e algum modo de dizer não eu canto”.
Em 30 de abril de 2017, após ser boicotado pela grande mídia por quase uma década e perambular anônimo pelos pampas, o poeta sofreu o derradeiro exílio. A surpreendente repercussão de sua morte trouxe de volta obras que muita gente sequer imaginava existir: “Fotografia 3 x 4”, “Velha roupa colorida”, “Como nossos pais”, “Alucinação”, “Paralelas”, “Pequeno mapa do tempo”, “Divina comédia humana”, “Princesa do meu lugar, “Tudo outra vez”, dentre outras tantas canções que não nos abandonam jamais.
Morto o homem, resta a obra a mantê-lo sempre vivo. Bons exemplos, aliás, não faltam dentre seus seguidores. Basta ouvir o violão pontilhado de Gilvan de Oliveira, a trazer redobrada densidade às composições tornadas órfãs. Surpresa ainda maior é a jovem cantora Daíra Saboya, cuja interpretação de “Coração selvagem” reverencia o mestre de uma forma tão sublime que chega às raias da comoção. Quem quiser conferir isso tudo é só acessar no youtube. Ah sim, faltou aqui o nome do artista homenageado nesta crônica. Mas será mesmo que é preciso dizer?

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