Entre 1985 e 2022, o Pampa Sul-Americano, bioma composto por mais de um milhão de quilômetros quadrados entre Brasil, Argentina e Uruguai, perdeu 20% de sua vegetação campestre, segundo levantamento do MapBiomas. Nesse total, estão inclusos 9,1 milhões de hectares de campos nativos. O Brasil foi o país que teve a maior perda, chegando a 2,9 milhões de hectares, o que equivale a 32% da área que existia em 1985. Não é de surpreender, portanto, que muitas de suas espécies animais estejam ameaçadas de extinção.
De acordo com dados do Sistema de Avaliação do Risco de Extinção da Biodiversidade (SALVE), lançado em agosto pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), das 1.620 espécies analisadas no Pampa, 78, ou 4,8%, estão sob algum grau de ameaça. Dessas, 15 estão “criticamente em perigo”; 23 em “perigo”; e 40 são classificadas na categoria “vulnerável.
O SALVE é uma plataforma online, que reúne mais de 14.795 espécies avaliadas quanto a seu risco de extinção. Desse total, 5.519 possuem ficha publicada, entre as quais 1.253 estão em alguma categoria de ameaça. O objetivo do projeto é facilitar a avaliação do risco de extinção das espécies dos seis biomas brasileiros – Amazonas, Pantanal, Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica e o Pampa –, além das do ambiente marinho ao longo de toda a costa do país. O Sistema também tem como meta tornar essas informações mais acessíveis, contribuindo para aumentar o conhecimento sobre as espécies e a criação de políticas públicas para conservação da biodiversidade do país.
Segundo o engenheiro agrônomo Tales Tiecher, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a principal causa das ameaças às espécies do Pampa é a intensa conversão das pastagens naturais do bioma em lavouras anuais e plantações florestais, que reduziram drasticamente a presença de vegetação nativa. “Além disso, o uso incorreto de agrotóxicos e a entrada de animais e plantas exóticas na região, como o javali (Sus scrofa) e o capim-annoni (Eragrostis plana Nees) também aceleraram a redução populacional de algumas espécies nativas”, acrescenta.
O biólogo Juliano Ferrer dos Santos, pesquisador do Departamento de Zoologia da UFRGS, por sua vez, diz que a situação do Pampa, como a dos outros biomas brasileiros, é preocupante em termos de conservação e ameaças às espécies. “Ainda tem o diferencial dele ser caracterizado por grandes extensões de campo e ocupar uma pequena parcela do território nacional, pouco mais de 2%”, diz. “De certa forma, os impactos ambientais se tornam mais ‘invisíveis’ no Pampa do que nas outras regiões do país. Ou seja, uma área desmatada na Amazônia ou na Mata Atlântica acaba sendo muito mais notada pelo o público e divulgada na mídia, que nas regiões de campo nativo, onde a vegetação é principalmente rasteira.”
Ele defende que essa concepção precisa mudar se se quiser preservar a fauna associada aos campos. “Afinal, a fauna e flora dos campos nativos é tão diversa e cheia de particularidades quanto outros biomas brasileiros”, lembra. “Um artigo e um livro recentes, envolvendo pesquisadores de inúmeras áreas de conhecimento, mencionam que no Pampa vivem 9% das espécies brasileiras, das quais mais de 5.300 são animais. É um número representativo se considerarmos o tamanho do bioma em relação ao Brasil.”
Para Santos, é difícil citar categoricamente quais são as cinco ou seis espécies da fauna mais ameaçadas do Pampa, pois os dados do ICMBio apontam para quase 80 com, pelo menos, um alto risco de extinção na natureza em um futuro próximo, se não se tomar ações imediatas de preservação. “Algumas delas são mais preocupantes, pois estão categorizadas como “criticamente em perigo” pelo Instituto, ou seja, tem um risco extremamente alto de extinção”, diz. “Um grupo particular de peixes de água doce com o qual eu trabalho, conhecidos como peixes-anuais ou peixes-das-nuvens, inclui sete espécies nessa categoria.”
Santos explica que eles são assim chamados porque têm um ciclo de vida muito curto e curioso: habitam alagados e charcos que se formam durante a época chuvosa no inverno em meio aos campos do Pampa. “São multicoloridos e cabem na palma da mão”, conta. “Quando eclodem, crescem muito rápido e já se reproduzem, pois no final da primavera seus ambientes aquáticos vão secando e os eles morrendo. Mas seus ovos são enterrados no barro e somente no próximo ano irão eclodir. Repare o quão sensível é este ciclo e o ambiente destes peixes: quando está seco, não há indicativo que por ali vivem espécies únicas.”
Elas são únicas, explica, porque são exclusivas de certas regiões específicas do Pampa, às vezes, conhecidas de um ou dois desses alagados, que podem ter menos de 100m2. “Agora você imagina o quão impactante para esse grupo de peixes é a conversão dos campos nativos, que propiciam a formação e interrupção de áreas alagadas, em uma lavoura de soja, arroz ou plantio de eucalipto”, provoca. “É definitivo, as espécies são extintas. E o mesmo pode ocorrer nos centros urbanos. Algumas espécies de peixes-anuais são conhecidas somente de áreas úmidas no entorno de cidades e a rápida urbanização é outro impacto significativo para sua persistência.”
Mas essas espécies não são as únicas ameaçadas no Pampa. Há muitas outras em situação semelhante ao dos peixes-anuais, como várias de anfíbios, aves, répteis, mamíferos e invertebrados, ocupando os mais diversos ambientes do bioma. “Como exemplos, temos o cardeal-amarelo, o corredor-crestudo e o rabudinho, que são aves com populações muito reduzidas, isoladas no Parque Estadual do Espinilho [localizado no município de Barra do Quaraí, no sudoeste do Rio Grande do Sul, na fronteira com o Uruguai], uma área restrita de savana no Pampa brasileiro”, conta Santos.
Além disso, nas dunas e restingas arenosas do litoral e da Lagoa dos Patos são encontradas espécies de lagartixas nativas (gênero Liolaemus) e tuco-tucos (mamíferos subterrâneos do gênero Ctenomys), onde a urbanização está reduzindo drasticamente seu habitat e suas populações. “Nos riachos do Pampa também são encontradas diversas espécies endêmicas de caranguejos-de-água-doce (crustáceos do gênero Aegla), que têm seus ambientes impactados pela silvicultura e a erosão do solo”, acrescenta o pesquisador da UFRGS. “Dentre os grandes mamíferos, podemos citar o lobo-guará, o veado-campeiro e o gato-palheiro-pampeano, que precisam de extensas áreas de campos nativos para sobreviver.”