Em 1925, o grande cineasta Sergei Eisenstein disse em A Abordagem Materialista da Forma, “não precisamos de um ‘cinema-olho’, mas de um ‘cinema-punho’. O cinema soviético deve rachar cérebros, penetrar neles até a vitória final e, agora, diante da ameaça de contaminação da revolução pelo espírito pequeno burguês, rachar, mais do que nunca” [1].
Nós abolicionistas animalistas estamos diante da ameaça de contaminação da revolução chamada Direitos Animais. Sabemos que a teoria dos direitos animais e sua fundamentação prática, o modo de vida vegano é a mais revolucionária mudança econômica, política, social e cultural já pensada até o momento. Essa práxis revolucionária animalista está ameaçada por um inimigo antigo, o bem-estarismo.
O movimento bem-estarista já comemorou seu segundo centenário. Nesse tempo todo instituições ditas de proteção e defesa animal tornaram-se multinacionais, seus líderes tornaram-se celebridades, autoridades quando se trata de dizer as grandes indústrias de exploração animal qual é o melhor método de seqüestro, confinamento, tortura e assassinato de um outro indivíduo senciente. Quando se trata de direitos animais, abolicionismo animal e veganismo, o bem-estarismo é o ópio do povo.
O bem-estarismo é anestésico, é um subterfúgio, é o pior inimigo dos animais não-humanos, e deve ser combatido com tanta voracidade e firmeza quanto o especismo puro. Do especista assumido e declarado não esperamos nada de novo, pois ele é o que é, é honesto com sua posição e ideologia (exemplo, o corpo burocrático da unidade de ensino onde leciono que entendem por contraponto a legitimação do status de coisas, de propriedades dado secularmente aos outros animais comentado nas partes I e II) [2]. O bem-estarista não, esse é um canalha, em termos sartreanos é um sujo, só joga no time que está ganhando, sobe constantemente no muro para ver qual dos lados deve apoiar, ora está com este, ora com aquele.
O bem-estarista é como o pai ou padrasto que violenta a própria filha. A criança não espera daquele que é a figura de segurança e respeito em casa um ato tão torpe. Os animais não-humanos também não esperam que a mão que acaricia, também degole.
O discurso dos educadores veganos na escola “deve rachar cérebros, penetrar neles… rachar, mais do que nunca”. Nietzsche propôs uma filosofia a marteladas, esse é o momento para uma educação vegana formal a marretadas, e se os braços cansarem, que façamos uso de explosivos, mesmo correndo o risco de não rachá-la, mas dinamitá-la por completo. Os educadores veganos têm o dever moral de explicar, e repetir, repetir, e repetir para seus alunos e alunas que os bem-estaristas não falam em nome dos outros animais, mas de seus algozes.
Porém, poderíamos fazer dos bem-estaristas a imagem de demoníacos, pessoas más por natureza? A grande maioria delas não. Eles não são assim essencialmente, eles são como o tenente-coronel da SS, também conhecido como executor-chefe do Terceiro Reich, Adolf Eichmann,
“…nem pervertidos, nem sádicos, mas eram e ainda são terrível e assustadoramente normais. (…) essa normalidade era muito mais apavorante do que todas as atrocidades juntas, pois implicava que (…) esse era um tipo novo de criminoso (…) que comete seus crimes em circunstancias que tornam praticamente impossível para ele saber ou sentir que está agindo de modo errado” [3].
Para a pensadora política Hannah Arendt toda a ação banalizadora do mal é fundamentada na “ausência de pensamento”, na “superficialidade”, na “irreflexão”, ou seja, no “vazio de pensamento”. Ainda sobre Eichmann:
“Os atos eram monstruosos, mas o agente – ao menos aquele que estava agora em julgamento – era bastante comum, banal, e não demoníaco ou monstruoso. Nele não se encontrava sinal de firmes convicções ideológicas ou de motivações especificamente más, e a única característica notória que se podia perceber, tanto em seu comportamento anterior quanto durante o próprio julgamento e o sumario da culpa que o antecedeu, era algo de inteiramente negativo: não era estupidez, mas irreflexão” [4].
O que difere esse relato sobre a personalidade de Eichmann da grande maioria dos bem-estaristas? Nada. O que os leva a agir com tanta má-fé em relação aos outros animais é a “irreflexão”, o “vazio de pensamento”; como Eichmann são bons pais de família, vaidosos, exibicionistas, com um bom repertório de frases clichês, apegados à boa educação, sentem vergonha de algum deslize social que tenham cometido, tudo dentro da “normalidade” [5].
No entanto, temos uma minoria dentro do movimento bem-estarista, que são os seus ideólogos. Para esses não cabe a clássica e ingênua definição de ideologia marxiana d’O Capital: “disso eles não sabem, mas o fazem” ou como disse Arendt sobre o tenente-coronel da SS, “ele nunca compreendeu o que estava fazendo” [6]. Esses ideólogos do bem-estarismo se enquadram melhor na definição de Sloterdijk: “eles sabem muito bem o que estão fazendo, mas mesmo assim o fazem” [7].
A raiz do mal praticado todos os dias – nas mais variadas formas – as milhares de pessoas não-humanas, levando ao extermínio de bilhões anualmente, está na banalidade desse ato.
Acreditar que jaulas maiores, prisões aquáticas maiores, correntes maiores, anestésicos, pistolas pneumáticas, etc. são melhores que jaulas menores, prisões aquáticas menores, correntes curtas, marretadas, etc. é a mais pura demonstração de irreflexão, da ausência de pensamento, fortalecido pelo afastamento da realidade.
Educadores veganos de todo o pais, uni-vos. A ideologia bem-estarista está tomando força dentro do nosso, ainda, recém nascido movimento de direitos animais no Brasil. Sedes firmes!
Por isso somos a contraposição.
Por isso somos a contra-hegemonia.
Por isso nossa pedagogia é anti-especista, seja ela eletiva ou elitista.
É preciso contrapor com dureza o discurso banalizador do mal feito pelo bem-estarismo.
A educação vegana formal de base, crítica e autocrítica, radical e rigorosa deve estar em constante estado de vigília, vacinando-se ininterruptamente contra o mal do bem-estarismo, este representado pelos onívoros conscienciosos, ovolactistas, “abolicionistas” pragmáticos e “veganos” flexíveis.
Peço desculpas pela longa citação, mas o martelo nietzschiano precisa falar, e esse recado é para os educadores veganos.
“Por que tão duro!”, falou um dia ao diamante o carvão de cozinha; “então, não somos parentes próximos?”
Por que tão brandos? Isto, meus irmãos, eu pergunto a vós; então – não sois meus irmãos?
Por que tão brandos, tão dóceis e condescendentes? Por que há tanto negar e renegar em vosso coração? E tão pouco destino em vosso olhar?
E se não quisésseis ser destinos e inexoráveis, como poderíeis – vencer comigo?
E se a vossa dureza não quisesse fulgurar e cortar e retalhar, como poderíeis, algum dia – criar comigo?
Porque os criadores são duros. E deverá parecer-vos suprema ventura imprimir a vossa mão nos milênios, como em cera –
Suprema ventura, escrever na vontade dos milênios, como em bronze – mais duros do que o bronze, mais nobres do que o bronze. Duríssimo é somente o mais nobre.
Essa nova tábua, meus irmãos, suspendo por cima de vós:
TORNAI-VOS DUROS!” [8]
Notas
1. EINSENSTEIN, Sergei. O encouraçado Potemkin. São Paulo: Moderna, 2011, p.16 (col. Folha cine europeu; 13).
2. DENIS, Leon. Contraponto. Em: https://www.anda.jor.br/20/09/2010/contraponto
___________. Contraponto – parte II – A missão. Em: https://www.anda.jor.br/02/12/2011/contraponto-%E2%80%93-parte-ii-%E2%80%93-a-missao
3. ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 299.
4. ____________. A Vida do Espírito: o pensar, o querer, o julgar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 18.
5. DENIS, Leon. Direitos animais: um novo paradigma na educação. In: Silvana Andrade (org.). Visão Abolicionista: Ética e Direitos Animais. São Paulo: Ed. LibraTrês, 2010, v. 1, p.171-179.
6. ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 310.
7. ZIZEK, Slavoj. “Como Marx inventou o sintoma?” In: Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. p. 297-331.
8. NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995, p. 220-221. CF. O crepúsculo dos ídolos. Lisboa: Editorial Presença, 1973, p. 149.