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TRÁFICO DE ANIMAIS

Contrabandistas chineses estão exterminando onças-pintadas

7 de setembro de 2021
Beatriz Paoletti | Redação ANDA
13 min. de leitura
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Foto: Reprodução | Pixabay

Entre 2014 a 2019, 760 presas de onça-pintada foram apreendidas, de acordo com a bióloga Ángela Núñez, que trabalha na Associação Savia, organização de defesa ao meio ambiente na Bolívia.

“Acredita-se que foram mortas pelo menos 200 onças, ou até mais, porque nem sempre eles conseguem obter as 4 presas (dentes caninos) de cada onça”, fala Núñez.

Em um caso de apreensão na Bolívia, foram encontradas 185 presas em um restaurante em Santa Cruz, com o envolvimento de dois cidadãos chineses. Além disso, o serviço postal da Bolívia, Ecobol, identificou cerca de 300 presas em 16 pacotes com destino à Ásia.

A relação entre a apreensão numerosa de presas e o envolvimento de organizações criminosas chinesas está aferida em relatório de ONGs internacionais.

A tal ação criminosa prejudica tanto o maior felino da América quanto a integridade dos que trabalham para evitar que o tráfico ocorra, como Uzquiano (guarda-florestal e personagem do documentário “Tigre Gente”, que expõe a questão do tráfego das onças pintadas) e outros guardas-florestais.

A relação do tráfico com a cultura chinesa

A documentarista americana Elizabeth Unger dirigiu o filme “Tigre Gente”, que trata sobre a importância da onça-pintada na cultura local e em seu habitat, além do claro problema do tráfico relacionado ao animal.

Ela estudava biologia quando viajou para a Bolívia para trabalhar como voluntária em um centro de resgate de vida selvagem. A vivência dela em loco a permitiu escolher entre se dedicar à pesquisa científica e expor problemas internacionais, preferindo o segundo.

“Conservando a onça-pintada, conservamos todas as espécies de plantas e animais que convivem com ela, inclusive a humana, por todas as funções ambientais que esse sistema nos proporciona”, explica a bióloga Ángela Núñez.

Unger espera que quem assista ao documentário, “capte a mensagem de que a onça-pintada é um animal incrível que deve ser salvo”.

Além de Uzquiano, outra protagonista central do filme é a jornalista chinesa Laurel Chor, que pesquisa e mostra o lado cultural asiático relacionado com o tráfico e as crenças de quem compra esses produtos.

“Queremos mostrar que essa é uma questão complexa. Que demonizar a comunidade chinesa não resolverá o problema do tráfico ilegal de partes de onças nem reduzirá seu consumo. Pode ajudar a entender a mentalidade por trás da demanda”, trata Unger à BBC Mundo.

A documentarista americana percebe que há percepções erradas sobre a questão do tráfico e a cultura asiática. Muitos pensam que é grande maioria da população da China que consome produtos fruto do tráfico ilegal de animais, mas a realidade é que é um grupo restrito de pessoas.

“Também é importante compreender que tradições muito antigas, passadas de geração em geração, por exemplo no uso da medicina tradicional, são um fator a ter em conta.”

“Considero as onças minha família”

Uzquiano cresceu em Buenaventura, uma pequena cidade na região amazônica da Colômbia.

“Para mim, isso não é apenas luta por um animal, é algo muito mais profundo. Considero as onças minha família”, explica Marcos Uzquiano, o chefe de proteção ambiental do parque na Bolívia.

“Desde a infância, a onça representa uma grande energia. Para mim, ela é força, é vida, é mito”, falou ele à BBC Mundo.

“Não havia médicos na cidade onde crescemos. O xamã, que para nós era o médico de família, nos contava histórias de pessoas que se transformavam em onças.”

“Nas comunidades indígenas, a onça é conhecida como tigre. Meu sonho de criança era realmente me transformar em um tigre. O destino me levou a me tornar um guarda florestal para preservar a vida da onça e lutar contra o tráfico de presas”, relata Uzquiano.

A lenda deu o título ao documentário, “Tigre Gente”.

Organizações criminosas

A primeira problemática denunciada no filme é mostrada através de cena de protetores de vida selvagem locais, que ouvem no rádio comunitário alguns anunciantes que estão atrás de presas de onças para comprar. Apesar do ocorrido, a Bolívia proíbe a comercialização e captura de animais silvestres.

Em 2017, os biólogos Enzo Aliaga e Ángela Núñez publicaram um artigo alertando sobre o tráfico.

Uma investigação na Bolívia entre 2018 e 2020 revelou a grandeza do problema. A averiguação foi feita pela ONG Long Earth League International (ELI), junto do comitê holandês da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), dando origem a um relatório publicado em 2020.

“O tráfico de partes de onças-pintadas não é apenas um problema de conservação, mas também de crime organizado”, diz Andrea Crosta, cofundadora e diretora da ELI. “Os principais traficantes, todos da Ásia, também se envolvem em outros crimes graves e costumam estar ligados ao crime organizado”.

São ao menos três organizações criminosas (constituídas principalmente por cidadãos chineses) em operação no território boliviano, sendo que um dos grupos teria ligações com uma conhecida máfia de Hong Kong.

Os traficantes conseguem acessar os locais onde se há onças-pintadas através do Suriname e da Guiana, em rotas e aeroportos pouco protegidos. A carne de onça-pintada também era vendida em dois restaurantes em Santa Cruz dirigido por estrangeiros.

“Compartilhamos com as autoridades bolivianas um relatório confidencial com nomes e informações importantes dos traficantes chineses mais atuantes no país”, fala Crosta à BBC News Mundo.

Onça por tigre

As onças são capturadas e suas presas, ossos, pele e órgãos genitais são utilizados ​​na medicina tradicional, ou ainda usados como amuletos e joias. A cofundadora da ELI  afirma que há um falso comércio de partes de tigre na China, e que na verdade são de onça. O tigre é o animal usado tradicionalmente.

“É cada vez mais difícil encontrar tigres selvagens na Ásia e os clientes querem órgãos de animais selvagens, não de tigres criados em cativeiro”, destaca. Os grupos criminosos, por exemplo, usam restaurantes de fachada para suas operações.

“Os mais importantes traficantes de animais selvagens que conhecemos na América Latina, do México à Bolívia — trabalhamos em sete países da região —, têm negócios legítimos não apenas para encobrir suas atividades ilícitas, mas também como fonte de lucro”, explica Crosta.

Os caçadores na Bolívia às vezes vendem uma presa a intermediários por menos de US$ 100 (cerca de R$ 515). O consumidor final na Ásia paga de US$ 900 (R$ 4 mil) a US$ 3 mil (R$ 15,4 mil).

Segundo Enzo Aliaga, dirigente da diretoria de biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente da Bolívia, o problema também atinge o Panamá, Peru, México, Guiana e outros países onde existe a espécie.

Há indícios que o Brasil, que tem a maior população de onças (que nos países de língua espanhola são chamada de jaguares) no continente, também seja afetado.

Presas: fáceis de despistar

Segundo Crosta, da ELI, o contrabando de animais é mais fácil de ser despistado do que o tráfico de animais vivos.

“Contrabandear presas é extremamente simples porque são pequenos objetos que podem ser escondidos em qualquer lugar, como bolsos ou bagagem”, explica ela.

Se caso forem contrabandeados grandes quantidades ou ossos, os materiais são escondidos em remessas de produtos como madeira.

“A menos que você saiba onde procurar, é impossível encontrá-los”, acentua Crosta.

Aliaga diz que o tráfego das partes dos animais selvagens é feito até em caixas de bombons. “Eles passam pelos controles do aeroporto porque o detector de metais não vai soar”, relata.

Os traficantes também vendem a pele do animal — Foto: ELI

Investimento chinês na América do Sul e Central

Uma pesquisa de 2020 sobre apreensões na América do Sul e Central, publicada na revista Conservation Biology, identificou a relação entre a chegada à região de investimentos chineses, para fins de avanço na infraestrutura, e o tráfico de partes de onças.

“Encontramos uma correlação consistente entre o nível de investimento privado chinês e o número de apreensões de partes de onças-pintadas, mas não de onças-pardas ou jaguatiricas, nossas espécies de controle. Neste estudo, no entanto, não avaliamos como a cooperação econômica pode facilitar o tráfico”, explica Thais Morcatty, pesquisadora da Oxford Brookes University, na Inglaterra, e uma das autoras do estudo.

“O número de apreensões aumentou significativamente na América Latina entre 2012 e 2018. Mas ainda não comprovamos que uma coisa causa a outra. Não podemos especificar se o aumento é causado pelo aumento do tráfico, resultado de maior monitoramento ou resultado de algum outro fator. Portanto, esses dados devem ser interpretados com cautela”, fala ela.

“Em nossos registros, 34% das apreensões foram supostamente vinculadas à China como destino ou a cidadãos chineses. Os 66% restantes incluem comércio interno e tráfico internacional em que o país de destino não foi identificado”, relata a pesquisadora.

A caça de onças também pode levar ao tráfico de outras espécies.

“Já há evidências disso. Em um dos anúncios, há dois ou três anos, eles pediam abertamente chifres e genitais de veados e garras de tamanduás e ursos andinos”, fala Aliaga.

Núñez pensa que é preciso que as autoridades se atentem mais a questão do tráfico internacional de animais selvagens.

“Sob o pretexto de ‘ataques de onças ao gado’, estão caçando onças, que provavelmente estão entrando no mercado negro para o tráfico de suas partes.”

Ameaças ambientais 

O tráfico é um dos problemas que afligem as onças-pintadas, elas estão também tendo que lidar com a destruição de seu habitat por causa do avanço agressivo do agronegócio, de acordo com Enzo Aliaga, do Ministério do Meio Ambiente da Bolívia.

“A pecuária extensiva e mal gerida está se expandindo, transformando florestas em pastagens”, destaca Aliaga, do Ministério do Meio Ambiente da Bolívia.

Outro grande problema são os incêndios. “No maior incêndio de 2019 na Bolívia, cinco milhões de hectares foram queimados. Estima-se que milhões de animais morreram, provavelmente onças entre eles” relata.

“As onças mal sobrevivem em circunstâncias tão adversas. Há conflitos com fazendeiros. As pessoas têm medo deles e os matam. A pressão sobre a onça ficou muito, muito forte. E eu temo que vai continuar crescendo”, aborda Aliaga.

Ameaças no território brasileiro

O tráfico das presas “parece potencialmente afetar as onças brasileiras”, reitera Thais Morcatty, da Oxford Brookes University.

“Existem apreensões de partes de onça em que a polícia suspeitou de envolvimento com o tráfico internacional, e outros relatos por populações locais próximos às zonas fronteiriças de partes de onça que estariam sendo levadas a países vizinhos como Suriname, por exemplo, para serem exportados para a Ásia”, aborda ela à BBC News Brasil.

Segundo Morcatty, de acordo com última publicação acadêmica de 2018, o Brasil “tem a maior proporção de área protegida (66% da área de abrangência da onça-pintada)” entre os países latino-americanos, e “a subpopulação Amazônica é estimada entre 56 e 58 mil indivíduos de onça-pintada”.

O aumento massivo do desmatamento no Brasil está afetando fortemente  a onça-pintada, além de milhares de outras espécies nos últimos anos.

O ICMBio, órgão do Ministério do Meio Ambiente, tinha um Plano de Ação Nacional para Conservação da onça-pintada, implementado em 2010, mas o programa foi encerrado em 2017 e nunca voltou à ativa.

No momento o órgão é uma das entidades ligadas ao Ministério do Meio Ambiente  que sofrem com corte de verbas e perda de funcionários.

Medidas de conservação na Bolívia

A Bolívia criou a Aliança Nacional para a Conservação da Onça-pintada, para agir sobre as problemáticas ambientais agravadas pelo agronegócio, além do tráfico, que estão acometendo a espécie.

Instituições governamentais, universidades, pesquisadores independentes e órgãos não-governamentais como a Wildlife Conservation Society, a Panthera e a Associação Savia Association, fazem parte da aliança.

“A reserva de Madidi é a área protegida com maior diversidade biológica do mundo, um refúgio para muitas espécies ameaçadas, incluindo a onça-pintada”, aborda Rob Wallace, cientista da Wildlife Conservation Society que analisa as onças-pintadas na reserva há 25 anos.

O Ministério do Meio Ambiente da Bolívia também lançou um programa para proteção da espécie, que inclui a formação de juízes e promotores para trabalharem com a aliança.

“As pessoas presas em flagrante delito foram libertadas por promotores que muitas vezes desconhecem a regra ou não a aplicam corretamente, ou foram condenadas a penas muito baixas”, trata Núñez.

Aliaga diz que, entre os mais de 20 processos criminais por tráfico de partes de onças, apenas três pessoas de cidadania chinesa foram condenadas à prisão, com penas de três e quatro anos.

Aliaga acredita que a penalização deveria ser mais severa “porque os traficantes e caçadores sabem que se matarem o animal estarão livres em pouco tempo”.

O plano também realiza pesquisas sobre a situação do felino. Estimativas internacionais feitas com diferentes métodos aproximam a população da onça-pintada na América entre 64 mil e 173 mil indivíduos.

O grande desafio no país continua sendo a falta de recursos.

“Recebi a denúncia de que o tráfico continua em uma área muito remota, mas o problema é que a Diretoria de Biodiversidade é uma pequena diretoria em termos de pessoal e orçamento”, fala Aliaga. “Tentamos trabalhar com a polícia ambiental, mas ela também é muito pequena,infelizmente.”

Marcos Uzquiano disse à BBC Mundo que se orgulha de ser guarda florestal em Madidi e das iniciativas que surgiram na Bolívia, mas também ressalta a necessidade de financiamento das medidas de proteção.

“Somos 26 guardas-florestais e dois diretores de proteção em um parque de mais de 1,8 milhão de hectares. Isso, somado à falta de equipamentos, torna a tarefa árdua. O orçamento não é suficiente para cobrir as despesas operacionais, de combustível”, explica.

Os guardas também relatam no filme a preocupação com o risco crescente de se tornarem alvos dos caçadores.

‘Enquanto houver mercado, vai continuar’

Aliaga diz que é preciso cooperação internacional. “Podemos continuar a luta aqui na Bolívia com penas mais duras, mas enquanto houver mercado, vai continuar”, fala.

Segunda a diretora do ELI, “os traficantes chineses na América Latina são o elo mais fraco do crime, a melhor oportunidade de interromper a cadeia de abastecimento ilegal”.

“Infelizmente, nos sete países em que operamos atualmente, não conheço nenhum governo que consiga combater com eficácia essas redes de tráfico chinesas. As entidades ambientais não têm recursos, não têm o conhecimento específico e nem mesmo têm intérpretes chineses”, explica Crosta.

“Algumas dessas agências têm uma intenção genuína de enfrentar o problema, mas admitem que não têm o conhecimento prático para fazê-lo.”

Grande parte das áreas identificadas como urgentes para a conservação da onça-pintada são áreas transfronteiriças, relata Rob Wallace. O animal pode ocupar um território de mais de 200 quilômetros quadrados.

“É absolutamente crucial que existam grandes áreas conectadas de habitat relativamente intacto”, aborda Wallace.

“É importante também que sejam tomadas ações da IUCN, uma vez que já existe uma proposta de mudança da categoria da espécie, de espécie em situação menos preocupante para espécie ameaçada internacionalmente”, fala a bióloga Núñez.

“Essa medida permitiria aos países tomarem mais ações em prol da conservação da espécie”.

No final do filme Tigre Gente, é mostrada uma palestra dada pela jornalista Laurel Chor sobre conservação para crianças em Hong Kong.

A educação ambiental, segundo Enzo Aliaga, é necessária na Bolívia também. “Quando os bolivianos começarem a aprender mais sobre a biodiversidade, acho que eles darão muito valor a essas vidas”.

Marcos Uzquiano espera que “Tigre Gente” eleve a conscientização sobre a necessidade de proteger a onça-pintada.

“Peço à população que volte seu olhar para as áreas protegidas, para a onça. Precisamos trabalhar como um povo unido ou essa luta não fará sentido. Nós, como guardas florestais, não conseguimos fazer isso sozinhos”, fala ele. “Precisamos do apoio da população e do compromisso da comunidade internacional.”

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