Quem vê de longe o verde que cobre as montanhas e planícies do litoral brasileiro, não faz ideia das mudanças imperceptíveis aos nossos olhos na estrutura da floresta e dos inúmeros segredos escondidos sob este tapete. Um deles é a convivência entre as várias espécies de animais, que bem poderia ser um exemplo para a nossa vida em comunidade se aprendêssemos a respeitar os recursos naturais disponíveis.
O conceito que temos de biodiversidade tem a ver com os animais dos quais nos aproximamos ou que se aproximam da nossa casa: gambás, morcegos, aranhas, mosquitos ou ainda algumas aves, como beija-flores e corujas. É fácil entender como essas espécies convivem, porque têm ambientes, alimentos e horários de atividades diferentes. Os beija-flores são diurnos e se nutrem de néctar, enquanto as corujas são noturnas e se alimentam de outros animais. Gambás e morcegos vivem na mesma floresta, têm hábitos noturnos e comem frutos e insetos, mas não brigam por espaço ou comida. Os gambás forrageiam principalmente no solo, o estrato mais baixo da floresta; os morcegos capturam insetos em pleno voo e buscam frutos em árvores inacessíveis aos gambás. Sem disputa acirrada pelos mesmos recursos, não há conflitos.
Por outro lado, a biodiversidade brasileira é tão exuberante que podem ser encontradas, numa mesma área, diferentes espécies silvestres com parentesco muito próximo, atividade nos mesmos períodos e com dietas e tamanhos semelhantes. Isso poderia levá-las a sofrer de forma mais intensa as pressões seletivas da competição, com mudanças de hábito e até extinção de espécies. Por que, então, isso não acontece? Os marsupiais – um grupo peculiar de mamíferos – podem nos ajudar a responder a esta pergunta.
Em aproximadamente 20 anos de estudos em fragmentos florestais, ilhas costeiras e Unidades de Conservação nos estados de Santa Catarina e Paraná, tivemos a oportunidade de observar os hábitos de seis das maiores espécies de marsupiais americanos que ocorrem em áreas de Mata Atlântica. As espécies de marsupiais pesquisadas foram: Chironectes minimus (cuíca-d’água), Metachirus nudicaudatus (cuíca-de-quatro-olhos-marrom), Philander frenatus (cuíca-de-quatro-olhos-cinza), Lutreolina crassicaudata (cuíca-marrom), Didelphis aurita (gambá-de-orelha-preta) e Didelphis albiventris (gambá-de-orelha-branca). Nesses estudos foram usadas mais de 50 mil armadilhas-noite para captura de animais vivos, roedores e marsupiais, e 10 mil armadilhasdia para registros fotográficos obtidos por meio de máquinas equipadas com sensores de movimento. Todas as espécies de marsupiais registradas nesse estudo são noturnas e oportunistas quanto à dieta, geralmente composta por insetos, pequenos vertebrados e frutos, exceção para a cuíca-d’água, que se alimenta principalmente de insetos, peixes e crustáceos aquáticos.
Apesar de as espécies não serem exclusivas de um único ambiente, geralmente ocorrem em maior abundância naqueles onde conseguem explorar os recursos com maior eficiência, incluindo itens alimentares, abrigos, parceiros, e minimizar fatores adversos como competição, parasitismo e predação. Os ambientes em que cada um desses animais ocorre são conhecidos como hábitat, e o conjunto de recursos que utiliza, incluindo o hábitat, é chamado de nicho ecológico.
O nicho de algumas espécies pode ser bem mais amplo que o de outras. A dieta dos gambás, que são maiores que as cuícas, inclui de ouriços marinhos e mariscos a sementes, frutos, insetos, vertebrados e até mesmo restos de comida de humanos e carcaças de outros animais. Ou seja, é bem mais diversificada do que a da cuíca-d’água, que se alimenta principalmente de animais aquáticos de rios e córregos. Isso é fácil de compreender, pois os gambás são encontrados em quase todos os ambientes utilizados pelas outras espécies, ou pelo menos muito próximos a esses ambientes, e também em ambientes onde as outras espécies não são encontradas, como os insulares e urbanos.
Por outro lado, as quatro cuícas são menores, com indivíduos adultos podendo pesar entre 200 e 800 gramas, e são bem mais exigentes quanto ao ambiente que utilizam. Assim, para que todas existam ao longo de boa parte da Mata Atlântica, precisam usar ambientes distintos. A cuíca-d’água habita rios e córregos principalmente em áreas de encosta. A cuíca-de-quatro-olhos-marrom vive em ambientes florestais bem preservados, com relevo pouco acidentado em áreas propícias à formação de grandes adensamentos de bromélias no solo. A cuíca-de-quatro-olhoscinza é encontrada em ambientes florestais bem preservados e úmidos com relevo acidentado, geralmente nas margens de rios e córregos. A cuíca-marrom habita ambientes alagados, principalmente banhados, tanto em áreas florestais quanto arbustivas.
Em nossos estudos, o hábitat se mostrou um dos mais importantes recursos utilizados por essas espécies de marsupiais e as alterações ambientais foram determinantes para o desaparecimento, a diminuição ou mesmo o aumento das populações (confira informações junto com as fotos). E qual a lição que a convivência desses animais pode nos trazer?
Nós vivemos no meio desses animais, mas expandimos cada vez mais nosso hábitat, nossas fronteiras. Com isso, os hábitats de outras espécies estão sendo alterados ou reduzidos abaixo das condições mínimas necessárias para que certas espécies vivam neles, reproduzam-se e mantenham populações viáveis. Esta condição tem levado ao desaparecimento de muitas espécies de áreas perto das nossas casas e, se não enxergamos o que ocorre com as espécies tão próximas a nós, o que dizer daquelas que estão distantes de nossos olhos?
Temos culturalmente o meio ambiente à nossa mercê, quando deveríamos pensar que somos apenas mais uma espécie dentro deste imenso sistema vivo que levou bilhões de anos para se formar. Os sinais de que nossa expansão ultrapassou os limites são marcantes e aparecem frequentemente em todo o mundo. E, ao prejudicarmos o meio ambiente, estamos não só diretamente prejudicando a fauna e a flora, mas também a nós mesmos. Exemplo disso é a extinção de várias espécies de seres vivos e o aquecimento global atual.
A nossa fauna, mesmo aquela com características e comportamentos aproximadamente semelhantes, ensina-nos que muitas espécies podem conviver na Mata Atlântica. Ao dividir os espaços, não precisam excluir umas às outras, pois consomem o alimento disponível no ambiente onde ocorrem, e todas podem evitar a exposição à luz do dia, onde seriam mais vulneráveis aos predadores. Os processos geológicos, climáticos, ecológicos e histórico-evolutivos geraram essas condições, tornando o Brasil um lugar raro no mundo: um país de megadiversidade.
E nós estamos inseridos neste meio. Muitas famílias vivem em casas cercadas de matas e muitos animais silvestres em matas cercadas de casas. Áreas bem preservadas precisam existir e as cidades podem coexistir com ambientes naturais se passarmos a respeitar a vida que circula pelos lugares onde o ser humano habita.
Conhecer o papel e os limites de cada um na natureza é de fundamental importância neste processo de conservação ambiental. Cabe a nós aprendermos o mais rapidamente possível a conviver de forma harmoniosa com toda essa riqueza de vida, como nos mostra a comunidade dos maiores marsupiais da Mata Atlântica.
Didelphis albiventris (gambá-de-orelha-branca)
Ocupa ambientes florestais mais abertos e arbustivos ou alterados pelo homem. Também pode ser encontrado em áreas urbanizadas, mas está ausente das pequenas ilhas litorâneas onde predominam florestas. Também é considerado um importante dispersor de sementes.
Chironectes minimus (cuíca-d’água)
O único marsupial com hábitos aquáticos, tem como principal ameaça à espécie a poluição das águas, assoreamento dos rios e a alteraçãoderrubada da mata ciliar ao longo de rios e riachos.
Philander frenatus (cuíca-de-quatro-olhos-cinza)
Caminha principalmente pelo solo, mas possui também habilidade de subir em árvores. A principal ameaça à conservação da espécie é a fragmentação florestal, que transforma florestas contínuas em capões isolados de mata.
Lutreolina crassicaudata (cuíca-marrom)
Considerado o principal carnívoro entre os marsupiais americanos, a mais temida ameaça à conservação da espécie é a drenagem, aterramento e ocupação de ambientes alagados para construções e agricultura.
Quem são:
Maurício E. Graipel é coordenador do Projeto Parques & Fauna do Departamento de Ecologia e Zoologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Thiago Bernardes Maccarini, Felipe Moreli Fantacini e Laise Orsi Becker são alunos do curso de Graduação em CiênciasBiológicas da UFSC e Nilton Cáceres éprofessor do Departamento de Biologia daUniversidade Federal de Santa Maria (UFSM)
Fonte: EPTV