O que têm de comum um comerciante octogenário, um poeta, uma enfermeira aposentada e uma pintora? Os gatos. A amizade pelos gatos sem tutor, que vivem em quintais, imóveis em ruína ou na solidão dos cemitérios
Eugênio de Andrade os chamava de dóceis animais, sempre os teve por perto e acabou por lhes dar abrigo poético junto aos seus livros. Adorados no antigo Egito, os gatos – é dos gatos que falamos – continuam hoje a cativar imprevistos admiradores, entre portas ou a céu aberto.
É uma dedicação singular, uma amizade persistente. Talvez por os “bichos serem melhores do que certas pessoas”. Há quem se levante com o cantar do galo, todos os dias do ano, para cuidar dos animais. Estes sem coleira, nem nome carinhoso ou de personagem famosa. Gatos apenas. Vadios, privados de casa. Vivem nos jardins, quintais e imóveis abandonados da cidade, dão alegria e movimento a cemitérios e becos escusos.
Por amor aos gatos, aos 82 anos, Fernando Mendes, pequeno comerciante, continua a levantar–se entre as quatro e as cinco da manhã. Começa na Praça Carlos Alberto, percorre a Rua de Cedofeita, na cidade do Porto. Sozinho, movido por uma bondade quase inexplicável. Termina a ronda, sacos vazios e leve de espírito, depois de matar a fome a mais de trinta gatos sem casa e sem tutor.
Uma pequena fortuna é despendida todos os meses para alimentá-los. Além do alimento, a despesa com a castração de alguns gatos, devolvidos depois ao local de origem.
“Só é pena o negócio estar muito em baixa”, diz. A Casa Mendes, instalada na década de cinquenta na Travessa de Cedofeita, quando abriu as portas vendia eletrodomésticos, gravadores, cartuchos, cassetes e outras “novidades”. Alguns dos produtos, fácil de ver, caíram em desuso. O senhor Fernando, contudo, foi-se adaptando à roda do tempo. Hoje vende candeeiros, distribui garrafas de gás… e muita gente para à porta da loja por outro motivo. Os gatos. Sim, os gatos.
Quatro gatos bem nutridos, muito senhores de si. Resgatados da rua, habitam o estabelecimentos. Estes têm nome. Um nome como se dava aos animais antigamente: Tareca, Patusco, Fusco e Farruco. São a companhia deste homem “sem mulher nem filhos”, apaixonado “muito apaixonado pelos animais, porque os animais são melhores do que as pessoas”.
Têm nome e uma história triste com final feliz. “Dois são irmãos”, conta. Alguém avisou o comerciante de que os animais estavam doentes, “aqui num quintal perto”. Encontrou-os “paralisados”, tratou-os – agora estão ali dois belos gatos.
“Boas almas” como Fernando existem outras, mulheres e homens. Dedicam muito do seu tempo a cuidar dos animais abandonados. A pintora Graça Marto garante saber falar com os animais. Em Matosinhos, onde vive, sempre que surge uma comunidade de gatos, depressa procura achar uma solução para proteger os indefesos animais. Há dias avisaram-na da existência de uma ninhada, junto a uma bouça. Sete ou oito gatinhos.
Foi ao local, levou comida, mas só encontrou um. Os outros, sumiram na vegetação. Quando o levou à clínica para tratamento, o veterinário ficou deveras espantado: “Onde arranjou este bosque-da-noruega’?” Gatos poucos comuns, vendidos a preço de fogo em certas casas de animais, na vizinha cidade do Porto.
Como a maioria dos gatos que recolheu da rua e trouxe para casa, o peludo bosque- -norueguês foi batizado com um nome de artista plástico. É o Basquiat. Pelo mesmo amplo apartamente, em tempos diversos, andaram o Miró e a Matisse.
Na obra de Graça Marto, os animais são também personagem frequente. Como recordação,nas suas muitas viagens pelo mundo, que fotografia preserva, há sempre um encontro e “uma conversa” com animais. “A linguagem deles é universal: gosto de conversar com os gatos em todas as partes do mundo.”
A relação da pintora com os “dóceis animais” é remota. A primeira palavra que pronunciou foi Xim, nome do gato que se deitava no berço e a aquecia nas frias noites, na casa grande de Viseu. “Eu não dormia sem o amarfanhar.” Graça Marto criou em Portugal o Midas, movimento de defesa de animais. Começou por contestar as touradas, hoje a sua acção incide principalmente na protecção de cães e gatos abandonados – acolhidos num abrigo em Santa Cruz do Bispo, Matosinhos.
Por amor aos gatos, Manuel Antônio Pina, durante largo período, foi visita regular ao cemitério de Agramonte, no Porto. À entrada, uma placa avisa: é proibido alimentar os animais. O jornalista e poeta furava o bloqueio – e alimentava os animais que velam os mortos com seu luminoso silêncio.
Pina vive agora no outro lado do rio, em Gaia, os gatos continuam a povoar os seus poemas e a sua casa, as visitas aos amigos de Agramonte são mais raras. Mas , deitados ao sol da manhã, ou debaixo das velhas camélias, os discretos animais do cemitério, cerca de meia centena, continuam a receber visitas diárias.
Pelo menos, duas mulheres iludem a vigilância, agora mais apertada dos responsáveis deste espaço gerido pela câmara. Todos os dias, uma antiga enfermeira chega ao grande portão do cemitério de carrinho de ir às compras ajoujado de comida . Gasta cerca de “300 euros mensais” nesta generosidade infinda. Depois é esperar pelo momento certo, e fintar os que “querem que os gatinhos morram à fome e à sede”. Outra mulher, da mesma devoção e persistência, faz o mesmo. Sempre sobressaltadas no cumprimento de um gesto de bondade.
Os jornalistas sentiram também diretamente o excessivo zelo em defesa da imagem imaculada do local. O repórter fotográfico só poderia trabalhar com autorização do gabinete de comunicação da autarquia do Porto. Num breve passeio por uma das alas do enorme cemitério, sempre vigiados à distância por duas sisudas personagens, encontramos diversos gatos. “Dóceis animais”, sem dúvida, a humanizar um lugar que não deve ser marcado só pela tristeza.
Fonte: DN Gente