Se há uma certeza na guerra, é a da democracia do sofrimento, que começa com os civis e encontra nos animais sua expressão mais pura: eles nada têm a ver com os desígnios humanos.
Biela e Viktor são cães de guerra, no caso, do conflito iniciado pela Rússia em 2022 quando Vladimir Putin determinou a invasão da Ucrânia. Para os russos étnicos do leste ucraniano, a história é outra, começando com a queda do governo pró-Kremlin de Kiev em 2014.
Para os animais em questão, é indiferente. Biela nasceu em Nikolske, aparentemente em berço quase esplêndido. A desocupação da cidade com o avanço russo na região de Donetsk trouxe a brutalidade a seu cotidiano.
Sem raça definida, Biela teve de fazer jus à categoria. Sem casa e convivendo com soldados que ocuparam as residências locais, ela passou a viver de restos, dormindo nas ruas.
Em algum momento do ano passado, conta o padre Inocêncio, o líder das ruínas que um dia foram o complexo ortodoxo da cidade, alguém não ficou feliz com o assédio canino e decidiu atirar na cabeça de Biela.
Ucraniano ou russo, isso o religioso não sabe dizer. “Ela chegou aqui assim”, disse. Assim, no caso, é com parte do maxilar inferior arrancado pelo tiro que um desalmado lhe disparou, errando a cabeça –para sorte de seus rivais, seu tirocínio não parece ser dos melhores.
Com a língua pendurada de forma anormal boa parte do tempo, Biela, apelido dado pelo padre que significa branca, referência à pelagem, passou a rondar o monastério de São Nicolau e São Basílio.
A presença de qualquer pessoa em roupa camuflada é suficiente para tirar Biela do sério. Agressiva, não aceita nenhuma tentativa de carinho, e aparentemente assim ficará.
A cerca de 350 km dali, esparramado ao lado do café que fica junto à prefeitura de Guenitchesk, a capital informal do lado ocupado de Kherson (sul ucraniano), está Viktor.
Com traços de mastim, esse SRD preto é outro sobrevivente da guerra, com um final de história significativamente mais feliz até aqui do que o de sua desconhecida par Biela.
Sua história é um pouco mais bem documentada. Quando a capital homônima da província, ocupada pelos russos desde a aurora da guerra, foi recapturada por Kiev no fim de 2022, Viktor se viu sem casa.
Os tutores, pela lógica russos étnicos, o deixaram para trás na corrida para cruzar o rio Dniepr rumo à margem sob controle de Moscou. De alguma forma, pulando de caminhão em caminhão, Viktor fez o mesmo caminho.
“Ele chegou aqui magro e cansado”, conta um morador de Guenitchesk que pediu para não ter o nome divulgado. “Logo, estava rondando cafés e alguém reconheceu ele de Kherson.”
A história do animal se espalhou e ele virou uma espécie de celebridade local. Paparicado com comida e esfregado como um pachá, Viktor hoje não quer saber de casa: gosta de ficar ao lado do quiosque que famosamente serve o melhor café da cidade.
ONGs de ambos os lados tentam dar conta dos cães e gatos abandonados pelos movimentos de linha de frente. A ucraniana Pluriton, por exemplo, diz ter recolhido mil animais desde o começo da guerra em Donetsk e Kherson, palco da inundação após a explosão de uma barragem em 2023, muitos deles gravemente feridos. Seu abrigo em Kiev está lotado.
Os combates intensos em Donetsk impedem que voluntários, que trabalham com coletes à prova de bala, se locomovam com desenvoltura. Algumas cirurgias têm de ser feitas in loco, o que traz desafios logísticos ainda maiores, segundo a ONG.
Fonte: Folha de São Paulo