Kátia Okumura Oliveira
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Noite de junho de 2000. Estava diante do computador navegando pela internet. Foi quando ouvi o choro de um filhote de cachorro. Não sei por que, mas fui para a calçada ver de onde vinha o ruído. Na época ainda morava com meus pais. Minha irmã me acompanhou. Subimos a rua e fomos em direção à avenida. O choro começou a ficar mais próximo. Vimos, então, um cachorrinho preto com manchas brancas no pescoço e peito, orelhas em pé, incansável. Deveria ter no máximo uns dois meses. Estava correndo de um lado para o outro. Andamos em sua direção. Ele parou, olhou para nós e, quando nos aproximamos, começou a correr. Corremos também. Ele parou novamente e continuou a nos olhar. Parecia que queria brincar. Decidimos que seríamos amigos. Ele foi para casa conosco. Chegamos dizendo: “olhem o que achamos!” “Mais um!”, foi o comentário da dona Tamiko. Mas não houve recusa. Todos se encantaram com o carisma do bichinho.
Na época, tínhamos três cachorros. O Goober, 5 anos. O Oliver, 3 anos. E a Tuti, 9 anos. A família era grande. Mas ainda cabia mais um: o Kiko, que se integrou rapidamente com a turma.
Ele brincava. Corria. E chorava. Chorava a noite inteira quando ficava sozinho. Mesmo dormindo na sala, quando as luzes se apagavam, não dava sossego.
Lembro do Kiko brincando com o Goober. Eu dizia: “Gugu, pega ele! Pega ele!” E o Gugu saia correndo atrás do Kiko. Rodavam a mesa da cozinha. Passavam pelas cadeiras. Iam para os quartos. Não paravam. Isso aconteceu diariamente por uns seis meses. Pois, logo, o Kiko cresceu. E cresceu. E cresceu. Como ele estava na rua e aparentemente subnutrido, o veterinário receitou várias vitaminas e remédios para os ossos. Como diria minha irmã quando era criança, “ele cresceu grandão!”
Ficou o maior da turma. E não sei o que fizemos de errado, porque algo foi feito com certeza, mas o Gugu, que era o melhor amigo do ex-filhote, virou seu inimigo. Tanto que tivemos que separá-los. Cada um ficou numa ala diferente da casa. E quando, eventualmente, se encontram, a briga era certa. Quando vê o Goober, o Kiko se transforma, o pelo fica arrepiado, os dentes expostos. Foram vários confrontos, que chegavam a tirar o nosso sono. O último acabou com o Goober, três vezes menor, no veterinário com vários furos, orelha mordida e todo enfaixado. Por sorte, muito cuidado e muita preocupação, esses encontros violentos nunca mais ocorreram. Há três anos, o Kiko fica na casa da minha tia, bem ao lado da nossa casa. Foi triste levá-lo para lá, mas foi preciso para evitar um desastre maior. Principalmente porque o Kiko acabou se desentendendo com todos os outros cachorros, à exceção da Tuti. Ele queria o carinho só para ele.
Meu pai idolatrava o Kiko. Infelizmente, o acompanhou por um ano apenas, pois faleceu em 2001. Orgulhava-se em ver o cachorro se desenvolvendo e falava para todos que tinha um cachorro grande, forte e muito bravo. Na verdade, o Kiko não é bravo. Apenas não gosta muito de estranhos (e do Goober). Mas conosco é um doce. O mais meigo de todos. Sempre atencioso, não é afoito na hora da comida como os outros. Ouve atenciosamente o que falamos. Se falamos, “isso não é do Kiko”, ele respeita. Mesmo que seja sua comida preferida. De vez em quando e por brincadeira, cometemos um ato cruel. Chegamos com petiscos que ele gosta e falamos “não é do Kiko”. Colocamos a comida no chão e ele não pega! Dá dó mas é engraçado. Rapidamente, consertamos. “Sim! É do Kiko!” Ele sorri (sim, cachorro sorri), pega o alimento e corre para a casinha de madeira. Dá cinco segundos e volta mostrando o petisco na boca.
Quando morava na minha mãe, todos os dias ao acordar eu abria a janela do meu quarto para cumprimentá-lo. Ele ficava em pé do outro lado, apoiado na parede, olhos caídos, preguiçoso e esperando o carinho no pescoço. Era um ritual. Acredito que ele sinta falta disso desde que me mudei.
Ele reconhece o barulho do meu carro. Toda vez que paro em frente à casa, ele vem correndo. Quando percebo que por um motivo ou outro ele não ouviu, o que é bem raro, dou ré e volto para fazer mais barulho. É batata! Lá vem o cachorro ao meu encontro, abanando o rabo, orelhas para trás, dando risada. É lindo.
Chego perto dele e falo: “faz cachorrinho!” É um código nosso. Quando digo isso, ele se agacha e fica esfregando o focinho de um lado para outro entre as patas dianteiras. O traseiro fica sempre para cima. É exatamente o que ele fazia quando era filhote.
Depois peço: “dá a pata”. Daí ele senta e dá a patinha. Falo: “a outra”. Ele olha para mim querendo dizer: “vou cair”. Olha para os lados, dá um impulso e coloca as duas patas na minha mão. Isso foi ensinado pelo meu irmão, que também o ensinou a andar na rua de forma sociável. Antes, poderia dar muita confusão. Aliás, no caso do meu irmão, o esperado é o passeio. Vê meu irmão e já quer ir para a rua.
E vem a terceira parte. “Vou pegar do Kiko!” Ele corre em direção à casinha que fica no fundo da casa. O intuito é proteger vasilhas com ração ou algum outro petisco que esteja com ele. Pronto. Mais um delicioso ritual cumprido. E a minha alegria é maior quando ele desanda a correr, ou melhor, a galopar pelo quintal. Cachorro forte. Corpo musculoso. Pelo com muito brilho e sempre, sempre amoroso.
Hoje o Kiko está com 11 anos e há dois meses sofre com problemas no fígado. Foram várias visitas ao veterinário e inúmeros exames. Mas o diagnóstico não é favorável. E a cada dia vemos ele perder um pouco do seu brilho, entusiasmo e apetite. Sempre olho o nariz dos cachorros para saber se estão bem. Algum dia me disseram que quando o nariz está seco é porque o bicho está doente. Até uma semana atrás, o nariz do Kiko estava bem úmido. Estive há poucas horas com ele e está seco. É muito triste vê-lo emagrecer.
O que vejo agora é um cachorro triste que se esforça para parecer bem. Ele não come sozinho. Minha mãe bate a comida dele no liquidificador e força a alimentação. Caso contrário, ele ficaria ainda mais fraco. Minha irmã fez um cronograma dos horários para os mais de cinco remédios. O pior é que não pode tomar muita água pois ela se acumula na barriga. Para tirá-la, mais um procedimento dolorido. Mas ele tem muita sede. Logo ele que não parava de beber água. E tinha que ser do jeito dele. O pote cheio até a boca, para que não tivesse muito esforço. Apenas apoiava o focinho no pote e lambia. E lá tinha que ir alguém voltar a encher seu “copo”. Foi minha prima Cristiana que identificou essa particularidade.
A única coisa que ele come são os petiscos que levo quando vou visitá-lo. Minha mãe fala que é só para mostrar que de uma forma ou de outra está bem. Ou quem sabe para cultivar o pouco do Kikão, como meu irmão o chama, de antes. “Sim! É do Kiko!”