É possível falar em luto? No caso descrito por Irene Delval, os revisores do trabalho recomendaram não utilizar o termo. Mesmo assim, é um comportamento que chama a atenção. “Talvez um protoluto, porque a mãe já tem sinais do corpo que ele não vai acordar. Mas ela não o larga, porque está em apego. Há uma dissonância cognitiva por conta do seu vínculo de apego – e a mãe precisa deste vínculo para cuidar apropriadamente de um indivíduo que depende totalmente dela por muito tempo”, diz ao Jornal da USP Irene Delval.
Ela relata que quando o filhote apelidado de Fire caiu no chão, e ainda estava vivo, houve muitas vocalizações de alerta, mas bastante semelhantes às feitas diante de uma ameaça como uma cobra, ou quando eles estão predando algum mamífero pequeno e a presa cai no chão. “Então não podemos falar necessariamente em sofrimento, seria uma interpretação”, explica a pesquisadora do Instituto de Psicologia (IP) da USP.
Diversos outros casos registrados na natureza e em cativeiro, porém, tornam incontroverso afirmar que os primatas não humanos podem sentir luto. Definido como um evento de desregulação emocional pela perda de um indivíduo com quem se tem vínculo, nos humanos o luto se manifesta através de perturbações no sono, estresse, diminuição da sociabilidade, da atividade e do apetite. E esses sintomas também foram observados em primatas diante da morte, como relata André Gonçalves. “Da mesma forma que atribuímos a capacidade de luto a crianças pequenas que ainda não têm um conceito claro da morte, também não é necessário invocar esse conceito para afirmar que outros animais podem experienciar o luto”, diz ao Jornal da USP.
Irene Delval comenta que há um grande cuidado para não se incorrer em uma antropomorfização – atribuindo a animais não humanos comportamentos que são típicos de nós mesmos. “Mas a questão é que este comportamento [levar o filhote morto] não parece ser adaptativo. O mais pragmático seria algo como ‘tá bom, o filhote morreu, a vida continua, vamos ter outro filhote, vamos copular amanhã e esquecer disso’, e não é o que acontece”.
Carregar o filhote morto é desadaptativo, vai contra a própria sobrevivência da mãe, gerando dificuldades de alimentação e de seguir o grupo, por exemplo. “Você pode pensar: ‘ah, a mãe não sabe se ele poderia acordar’. Mas tem uma hora que ela já vê que ele não vai reagir e mesmo assim não o deixa ir embora. Talvez porque esse vínculo de apego já foi estabelecido e ficou um pouco mais forte, ela se recusa. Isso para mim é um protoluto. Para os mamíferos, que têm um cuidado materno prolongado, isso é muito claro. Há casos de até 90 dias de mãe carregando o corpo”, diz Irene Delval.
Ela chama a atenção para o risco oposto ao da antropomorfização: a “antroponegação”, que é esquecer que nós humanos também somos animais, e que pode haver comportamentos que antes se pensava exclusivamente humanos, mas existem em outros primatas.
“Não queremos dizer que os outros primatas são como nós, mas lembrar que nós também somos primatas”, diz. “Não somos os únicos que fazemos alguma coisa quando um indivíduo da nossa própria espécie morre. Nos mamíferos, eu me inclino a dizer que o luto manifestado pelo carregamento do filhote morto tem a ver com com o apego, mas para isso precisamos acumular registros e testar melhor a hipótese.”
“O vínculo entre mãe e cria é tão forte que não desaparece logo depois da morte, e ficar em contato com o corpo pode ser uma forma de coping, de lidar com o sofrimento interno”, explica André Gonçalves.
“Em inglês, ‘grief’ refere-se ao sofrimento interno, enquanto ‘mourning’ é o processo externo de lidar com a perda, mas em português usamos apenas ‘luto’ para ambos”, esclarece o especialista.
Ele adverte que não se deve reduzir esses comportamentos a simples “instintos maternos”; o cuidado parental nos primatas tem vários fatores. “Embora os hormônios pós-parto provavelmente tenham menos impacto quando a mãe deixa de amamentar e retoma a ovulação, o forte vínculo mãe-cria persiste para além do mero instinto, influenciando o comportamento de carregá-la após a morte.”
Sobre os cuidados na interpretação de quem estuda o fenômeno, André Gonçalves lembra que cada ser humano tem um viés: “Não podemos escapar, mas devemos estar conscientes dele – é fundamental que os investigadores tenham cuidado para não projetar as próprias emoções nos animais observados.”
Assim, evitar o antropomorfismo está profundamente enraizado na formação desses pesquisadores. “Somos ensinados a considerar o contexto natural da espécie e a interpretar comportamentos como respostas a estímulos, para além das expressões emocionais. As conclusões devem basear-se em dados empíricos e observações, em vez de suposições preconcebidas. Mas claro que, na ciência, devemos estar sempre abertos a novas possibilidades”, pondera ele.
Irene Delval também não subestima o problema da antropoformização. “Não dá para ver um macaco mostrando os dentes e falar que ele está sorrindo, quando na verdade ele faz isso como uma forma de ameaçar outros”, exemplifica.
Por sinal, é também graças à antropomorfização que os primatas têm sido massivamente explorados para a produção de vídeos para redes sociais, em que aparecem vestidos como pessoas, bebendo refrigerante, entre outros. “A gente luta bastante contra isso”, diz Irene Delval, lembrando da campanha “Macaco não é pet”, da Sociedade Brasileira de Primatologia.