O vegetarianismo na Rússia do final do século 19 e início do século 20 conquistou pessoas com os mais diferentes perfis, e pertencentes as mais diferentes classes sociais. Intelectuais, escritores e outros artistas se motivavam pelas poucas obras disponíveis – como o clássico “Питание человека в его настоящем и будущем”, ou “A Nutrição Humana no Presente e no Futuro”, publicado de forma seriada em 1878 pelo cientista e reitor da Universidade de São Petersburgo, Andrey Beketov, no “Вестник Европы”, ou “Mensageiro da Europa”, uma revista de São Petersburgo, que circulou entre os anos de 1866 e 1918.
“Nos acostumamos tanto a ver os outros comerem carne que nem sequer pensamos sobre o abate daqueles animais cujas partes estão em nosso prato. Em algum lugar fora da cidade há um matadouro – um lugar nojento, fedorento e sangrento, onde eles cortam, esfolam e sangram. Mas quem é que espia lá dentro?”, pergunta Beketov.
A obra rapidamente chamou a atenção do escritor russo Liev Tolstói, que em 1892 publicou “O Primeiro Passo”, que se tornaria uma das bases do vegetarianismo russo. O ensaio versa sobre as experiências que Tolstói teve visitando os primeiros matadouros russos inspirados nas transformações da Revolução Industrial – quando animais já eram amontoados vivos em um mesmo local e mortos um a um distante dos olhos, talvez compassivos, dos consumidores.
“Um dos açougueiros nos explicou de que modo se mata, e nos mostrou o lugar em que acontece tal operação. Não a compreendi de todo, mas ao contrário do que eu pensava, a realidade teve mais impacto sobre mim do que a minha imaginação”, admitiu Liev Tolstói.
Esse era o apelo-mor do autor principalmente junto àqueles que recebiam ou receberam uma educação mais formal. Por outro lado, muitos camponeses se afastavam do abate e do consumo de animais não mediante qualquer tipo de literatura, mas porque começaram a refletir sobre o que viam, ouviam e faziam, e seguiam “a voz do coração”.
Ainda assim, é válido considerar que no século 19 não se usava ainda os termos vegetarianismo ou vegetariano na Rússia, mas sim “livre de abate”. Inclusive o conceito “livre de abate” se popularizou com Tolstói. Um dia, com a proximidade do inverno rigoroso, o escritor disse que estava interessado em conseguir um “casaco de pele livre de abate”. Da mesma maneira, se falava em “comida livre de abate” ou “comida sem abate” em vez de “comida vegetariana”.
Tolstói chegou a discutir o consumo de animais sob inúmeros aspectos – éticos, estéticos, pedagógicos, sociais, econômicos, ecológicos e de saúde. Entusiasmado, ele convidava as pessoas a participarem de uma “revolução moral mundial”, o que fez dele um ícone do vegetarianismo russo. Dois anos antes de sua morte, no dia 27 de agosto de 1908, a revista “Vegetarianskoe Obozrenie” publicou um artigo em comemoração ao aniversário de 80 anos de Tolstói. Na ocasião, o definiram como “O sol do mundo vegetariano”.
Mas isso não agradou todo mundo, e menos ainda a Igreja Ortodoxa Russa que em 1901 o excomungou e, dentre as diversas especulações sobre a causa, acredita-se que a mais credível tenha sido pela sua defesa fervorosa da abstenção do consumo de animais e a defesa de uma espiritualidade que independe de religião, além do desinteresse em contribuir financeiramente com a igreja. Depois de ler “O Primeiro Passo”, o clero condenou a obra e declarou que o ensaio estava distante de promover virtudes cristãs. Argumentaram que as restrições da igreja quanto ao consumo de carne, defendendo a abstenção desse consumo em dias específicos, era mais razoável e prática do que o “puro sentimentalismo de Tolstói”, que condenava o consumo de animais em geral.
Em reação ao vegetarianismo, a Igreja Ortodoxa começou a promover a Oração da Bênção da Carne: “Senhor Jesus Cristo, nosso Deus, olhai para a carne e a santificai, assim como tu santificaste o carneiro que o fiel Abraão trouxe-lhe, e como o cordeiro que Abel ofereceu-lhe em imolação, como também o bezerro cevado que tu ordenaste para ser morto … Esta carne é abençoada pela aspersão desta água benta, em nome do Pai, do filho e do Espírito Santo”. Porém, a própria igreja, sem avaliar o contexto, favorecia o vegetarianismo, porque os períodos de jejum religioso facilitavam a transição dos fiéis que, imersos nessa realidade desde a infância, não viam essa abstenção como um grande sacrifício.
Entre os artistas conceituados da época que apoiavam Liev Tolstói em sua jornada de promoção do vegetarianismo estava o pintor e escultor russo Ilya Repin. Tolstói o admirava tanto quanto artista como ser humano. De acordo com o pesquisador Peter Brang no livro “Россия неизвестная: История культуры вегетарианских образов жизни с начала до наших дней”, ou “A história da cultura do estilo de vida vegetariano desde o princípio até os nossos dias”, de 2006, Repin frequentemente demonstrava sua adesão ao vegetarianismo:
“Caldo de feno, de raízes, de gramíneas – esse é o elixir da vida. Frutas, vinho tinto, frutos secos, azeitonas, ameixas …nozes – energia. Posso enumerar todos os luxos de uma mesa de vegetais? Mas o caldo de ervas…” Ilya Repin dizia em alto e bom tom que seu corpo rejuvenesceu e ele se tornou mais resistente depois de se tornar vegetariano. “Mais forte na ginástica e muito mais bem-sucedido na arte”, pontuou.
A esposa de Repin, Natalia Nordman-Severova, que também era vegetariana, se tornou uma ativista dos direitos animais, e criticava aqueles que acreditavam que não comer animais, mas consumir leite e ovos estavam no caminho certo. Natalia afirmava que isso também significava “viver de roubo e assassinato”.
Em 1911, ela publicou o livro “Поваренная книга для голодающих” ou “Livro de Receitas para Famintos”. Natalia fazia o possível para mostrar os benefícios e a importância do vegetarianismo, tanto que em sua casa servia apenas comida vegetariana. Até mesmo quem não era vegetariano ficava extasiado com os pratos servidos. Por sua casa, passaram artistas e intelectuais como Maxim Gorky, Vladimir Mayakovsky, Vasily Polenov, Isaak Brodsky, Filipp Malyavin, Vladimir Bekhterev, Nicolai Fechin e Aleksandr Kuprin.
Conforme informações do livro “Россия неизвестная: История культуры вегетарианских образов жизни с начала до наших дней”, Natalia Nordman logo reconheceu que a aceitação do vegetarianismo dependia de apoio da ciência médica para conquistar a confiança da população e das autoridades russas. Por isso, ela escreveu a um conceituado neurologista para criarem juntos um departamento de vegetarianismo.
“Em nossos dias, o vegetarianismo está varrendo a Terra, com o poder de cura pela natureza. Em primeiro lugar, porque todos os dias a consciência desperta as pessoas e, nesse contexto, o ponto de vista sobre o assassinato [de animais] está mudando. As doenças causadas pela nutrição da carne também se multiplicam e os preços dos produtos de origem animal estão subindo”, justificou.
Escritores que desenvolviam personagens em oposição à Revolução Industrial, e que se manifestavam como figuras simbólicas de uma insatisfação anticivilização também endossavam um manifesto a favor do vegetarianismo. Exemplo clássico é o Doutor Astov da peça “Tio Vanya”, lançada por Anton Tchekhov em 1897. Fervoroso defensor das florestas russas, o personagem se queixa que todos aqueles que são diferentes são considerados pela sociedade moderna russa como “pessoas estranhas”. “Eu amo a floresta – isso faz de mim um estranho. Não como carne, isso me deixa estranho”, declara Doutor Astov.
Antes, em 1881, Nikolai Leskov, publicou o conto “Дворянский бунт в Добрынском приходе”, ou “O Tumulto da Nobreza na Paróquia de Dobrynsky”, que se passa durante as celebrações de Ano-Novo. Na história, os ortodoxos de Orlov comem com ferocidade leitões recém-nascidos. Os personagens afirmam que os animais ficam felizes em morrer para ter sua carne violentamente consumida em uma festa cristã – onde as boas-vindas são dadas com alegria enquanto uma das mãos levanta uma faca. Leskov, que era vegetariano, definia a si mesmo como alguém que optou pelo não consumo de animais por empatia e compaixão.
Em 1887, o escritor publicou o conto “Грабеж”, ou “Assalto”, em que descreve a matança de bezerros por um abastado açougueiro. A crítica do autor na obra subsiste na indiferença e na ação continuada do homem. Mas foi em 1889 que Nikolai Leskov criou o primeiro personagem vegetariano da literatura russa em “Фигура” ou “A Figura”.
No conto, publicado originalmente na revista “Труд”, ou “Trud”, o personagem principal é um homem que vive em Kurenyovka, no subúrbio de Kiev, e leva uma vida simples, cultivando o seu jardim e os seus vegetais comercializados em Podol, no Bazar de Zhitnem. Ele vive com a jovem Nastya Khoshlushka e sua filha de três anos. Nenhum deles se alimenta de nada que “tenha uma consciência de vida”. Em carta a Tolstói, Leskov relevou que a história do personagem vegetariano foi inspirada em uma figura histórica ucraniana.
No início do século 20, mesmo com a oposição da igreja e de autoridades do governo de Nicolau II, que qualificavam o não consumo de animais como uma afronta à igreja e uma cominadora contestação social, o vegetarianismo russo crescia. Inclusive uma edição do “Vegetarianskoe Obozronie” de 1909 cita que mesmo no calor da rejeição vegetariana por parte das autoridades, era possível encontrar comida vegetariana em qualquer cidade. Cinco anos depois, a Rússia se destacava com suas 73 cafeterias vegetarianas em 37 cidades. Nesse aspecto, a opinião pública era mais forte do que a Igreja Ortodoxa e o Governo Imperial Russo juntos.
Ainda assim, vegetarianos eram vistos com a estranheza citada pelo Doutor Astov de Tchekhov. Um jovem camponês chamado N. Lapin confidenciou em entrevista ao “Vegetarianskoe Obozrenie” em 1913 que desde que se tornou vegetariano, aos 18 anos, surgiram rumores em sua aldeia em Saratov que ele seria incapaz de continuar trabalhando no campo – porque sem carne, leite ou ovos, não restaria força. O jovem continuou exercendo a sua função sem qualquer problema, então espalharam um boato de que ele era um “anticristo que veio à Terra para tentar as pessoas”, segundo informações registradas pelo professor de filologia eslava Peter Brang, da Universidade de Zurique, na Suíça.
Com a rápida ascensão do vegetarianismo em território russo, a polícia também passou a ser chamada para intervir em reuniões e palestras sobre vegetarianismo. Algumas autoridades do governo de Nicolau II, também conhecido como o Portador da Paixão pela Igreja Ortodoxa, começaram a exigir que “a palavra com V” deixasse de ser usada em novos estabelecimentos. Mais uma tentativa em vão. O vegetarianismo não deixou de crescer nem com essas medidas. Em 1913, Moscou sediou a primeira convenção vegetariana russa. Uma das metas era estabelecer uma série de medidas para transformar o país na maior nação vegetariana do mundo. Nada aconteceu como planejado, e isso também porque a convenção foi arruinada por uma “questão nacionalista vergonhosa”.
O Ministério da Administração Interna proibiu que os numerosos judeus sem residência fixa em Moscou participassem da convenção. À época, havia um sentimento antissemita na Rússia, e como os vegetarianos já estavam na lista de indesejados das autoridades, não puderam aceitar a participação de judeus – preocupados com a possibilidade de uma implacável perseguição.
Ainda assim a situação era aceitável. A derrocada do movimento vegetariano russo começou somente com a chegada da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), que trouxe uma reflexão em oposição ao vegetarianismo: “Como é possível defender a filosofia “livre de abate” quando muitas pessoas são mortas quase todos os dias?” Questionamentos como esse se espalharam pelas ruas da Rússia e, embora capciosos, já que eram usados como propaganda contra o vegetarianismo, foram vistos como sensatos.
Em 1917, a revista “Vegetarianskoe Obozrenie” comemorou a Revolução Russa, inclusive publicando que “Os jubilosos portões de uma esplêndida liberdade se abriram para a exausta nação russa”. Quando as autoridades baniram a pena de morte, os vegetarianos celebraram, crentes de que a medida logo se estenderia aos animais não humanos; abrindo caminho para a Rússia se tornar o primeiro país a proibir ostensivamente a matança de animais. Uma utopia.
A princípio, os vegetarianos continuaram, sem muito alarde, o seu trabalho de difusão do vegetarianismo. No entanto, a chegada da Revolução Vermelha trouxe muita desconfiança, e os vegetarianos que antes de 1917 eram vistos com bons olhos pelos bolcheviques, passaram, mais do que nunca, a ser considerados suspeitos. Havia um clima de muita tensão, e qualquer boato colocava os vegetarianos na berlinda.
Com a morte de Vladimir Ilyich Ulyanov ou simplesmente Lenin, e a consolidação de Josef Stalin como líder da União Soviética em 1924, após um período de dois anos de conflitos e incertezas sobre o comando da URSS, a situação não melhorou. Muito pelo contrário. No outono de 1929, muitos membros da Sociedade Vegetariana de Moscou foram presos e deportados para o Campo de Prisioneiros de Solovki, no oblast de Arkhangelsk. As cafeterias vegetarianas não foram fechadas, mas tiveram de ser renomeadas para “Cafeterias Dietéticas”. Promover o vegetarianismo nesses locais também era proibido.
As comunas tolstoianas, que já eram formadas por cinco a seis mil vegetarianos em 1917, foram dissolvidas e seus membros deportados. O governo de Stalin justificou que a ação era imperativa porque essas comunas eram formadas por kulaks (camponeses ricos dos tempos do Império Russo). Porém, segundo o livro “Россия неизвестная: История культуры вегетарианских образов жизни с начала до наших дней”, ou “A história da cultura do estilo de vida vegetariano desde o princípio até os nossos dias”, de Peter Brang, isso era mentira. O objetivo era reprimir os vegetarianos russos, que entenderiam rapidamente a mensagem.
Na Sibéria Ocidental, perto de Novokuznetsk, uma comuna chamad “Zhizn I Trud”, ou “Vida e Trabalho” era composta por vegetarianos que se dedicavam à plantação de vegetais que abasteciam as novas instalações industriais. Em 1935, todos os seus membros foram presos. Tudo isso desestimulou o desenvolvimento do vegetarianismo russo. O objetivo era fazer com que os vegetarianos temessem as consequências dessa indesejada filosofia de vida. E caso não quisessem abdicar disso, pelo menos temeriam promovê-la.
Referência
Brang, Peter. Россия неизвестная: История культуры вегетарианских образов жизни с начала до наших дней. Языки славянской культуры (2006).