Nas últimas eleições municipais, que ocorreram no segundo semestre de 2024, vimos uma grande quantidade de candidatos que se diziam defensores dos animais. Entretanto, para além de um discurso emocionado, muitas dessas falas carecem de embasamento e, além disso, de uma visão mais ampla sobre as diferentes demandas que envolvem os animais não-humanos e como propor projetos viáveis e possíveis, considerando a realidade local.
A maioria das propostas envolvia ações direcionadas aos animais domésticos, como promessas de ampliação de procedimentos de castração, fiscalização de maus-tratos e identificação animal. Apesar dessas ações serem extremamente importantes, a criação e/ou ampliação de políticas públicas para os animais envolve uma série de outros pontos que devem ser considerados e, o mais importante, uma política animalista que não faça distinção de espécies e inclua os variados grupos de animais.
A defesa da fauna silvestre é fortemente relacionada à proteção ambiental, uma vez que devemos evitar que esses animais sejam retirados de seus hábitats naturais, em especial pelas ações antrópicas que impactam negativamente esses grupos, como a caça, o tráfico de vida selvagem, mas também por outros tipos de perdas de território, como ocupações irregulares do solo, desmatamento e avanço da agricultura e/ou pecuária. Considerando esse cenário, a gestão dos municípios precisa reconhecer que essa demanda existe e é gravemente influenciada pelas mudanças climáticas que pressionam para que se estabeleça, o quanto antes, políticas de proteção a esse grupo de animais.
Principais desafios
Um dos primeiros obstáculos a superar quando discutimos a necessidade de avanço das políticas públicas para os animais nas cidades, independente do grupo, é o especismo. O especismo é uma forma de discriminação pela espécie a qual um indivíduo pertence e é a base utilizada para validar a exploração e subjugação da imensa maioria dos animais.
Outro ponto desafiador é o reconhecimento de que os animais silvestres não são meros recursos ambientais e devem ter seu direito à vida respeitados. O argumento da conservação das espécies e o risco iminente de extinção de espécies é válido para aproximar o movimento animalista do ambientalista, mas é preciso mais. E, no caso, é preciso reconhecer esses indivíduos como sujeitos de direitos e detentores de dignidade própria.
Superados estes obstáculos, o próximo passo é fazer com que os municípios realizem um diagnóstico da situação dos animais silvestres na cidade. Cada localidade tem suas particularidades que envolvem não somente aspectos geográficos, como tipo de vegetação e solo, mas também como a sociedade humana vem ocupando o território e pressionando a vida silvestre. O desenvolvimento urbano, a forma de ocupação do território, a economia local e os fatores socioculturais tornam a realidade local única e desafiadora. É importante identificar quais são as principais demandas locais, como se no município ocorre caça (quais grupos de animais estão em risco e em quais regiões isso ocorre), se há venda ilegal (identificar os locais e realizar operações de fiscalização), se há demanda de destinação de fauna silvestre para centros de reabilitação e de que maneira a proteção animal pode ser abordada com a população para auxiliar na prevenção dos maus-tratos. Esse diagnóstico prévio visa garantir que os silvestres estejam adequadamente representados no orçamento público, com verbas destinadas para as principais demandas identificadas.
Premissas legais
A competência dos municípios para legislar sobre o meio ambiente está prevista na Constituição Federal de 1988, que adota um modelo de competência compartilhada e descentralizada em questões ambientais. Essa competência é estabelecida, principalmente, nos seguintes artigos:
Competência comum (Artigo 23, incisos VI e VII):
Os municípios, juntamente com a União, os Estados e o Distrito Federal, têm o dever de:
- VI – Proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas.
- VII – Preservar as florestas, a fauna e a flora.
Essa competência exige cooperação entre os entes federativos para implementar políticas públicas que garantam a proteção ambiental.
Já no artigo 30, os incisos I e II determinam a competência suplementar nos quais os municípios podem legislar em conjunto com a União e os Estados. Ou seja, os municípios têm competência para legislar sobre assuntos de interesse local, como criar normas que detalham leis estaduais ou federais sobre proteção ambiental, adequando-as às peculiaridades locais; e regulamentar o uso e ocupação do solo, como através de planos diretores e normas sobre áreas verdes, saneamento ou controle de resíduos.
Os municípios têm um papel crucial porque estão mais próximos dos problemas e entendem as peculiaridades locais, mas devem atuar de forma articulada com os demais entes da federação para garantir a eficácia das políticas públicas ambientais.
Fomento a leis e ampliação de áreas verdes
É comum o entendimento equivocado de que a competência para legislar e proteger os animais silvestres está restrita ao governo federal e aos Estados. No entanto, os municípios também possuem um papel relevante nesse tema, como já citado nas premissas legais. De acordo com o princípio da competência concorrente e suplementar, os municípios podem criar legislações específicas desde que estas estejam em conformidade com a Constituição Federal e as leis federais e estaduais vigentes, complementando-as de maneira a atender às necessidades locais.
Assim, não é apenas possível, mas desejável que os municípios assumam uma postura ativa e propositiva na proteção da fauna silvestre, elaborando leis e políticas públicas voltadas à conservação ambiental e ao combate ao tráfico de fauna e exploração de animais silvestres. Essa atuação local reforça a proteção à biodiversidade e contribui para a promoção de um desenvolvimento sustentável, alinhado aos preceitos constitucionais e aos compromissos ambientais do país.
Entre as ações que os municípios podem executar, podemos citar a proposta ou o avanço de legislações específicas. A legislação de proteção ambiental brasileira é regida por um conjunto de leis e normas propostas pelos três entes federativos. As principais legislações são, por óbvio, federais, mas Estados e municípios podem legislar sobre o tema pois possuem competência compartilhada. Entre as medidas que podem ser propostas por municípios, podemos citar a criação de decretos que visam o estabelecimento de áreas de proteção ambiental ou a implementação de melhorias nas condições dos parques municipais já existentes, assim como a criação de reservas ambientais para que as espécies nativas tenham condições de se manter com bons níveis de bem-estar e condições de perpetuar a espécie em vida livre. Outra iniciativa nesse sentido é a criação de corredores ecológicos para a passagem de fauna, conectando fragmentos de vegetação existentes, permitindo o fluxo de indivíduos e garantindo variabilidade genética.
Educação ambiental x educação animalista
Outro ponto de vital importância é estimular na comunidade o senso de respeito aos animais, com iniciativas de conscientização que podem ser realizadas junto à comunidade escolar, com atividades específicas voltadas às crianças e atividades extramuros, com a população geral, em eventos oficiais do município. A população deve ser informada sobre os direitos dos animais, o impacto da caça e as consequências legais e para os animais do tráfico de fauna. Nas escolas, podem ser fomentadas atividades com enfoque na proteção ambiental e na conservação de animais silvestres.
A verdadeira educação ambiental se faz mostrando à população que o local de animal silvestre é na natureza, vivendo em vida livre e com possibilidades de expressão de seu comportamento natural e não sob a posse humana. Ações ditas “educativas” que permitem a interação física das pessoas com os animais, como é feito em locais como zoológicos e fazendinhas, são contraindicadas e deseducativas, pois incentivam o uso de animais para fins recreativos.
A conscientização também estimula na população a empatia e o respeito a todas às outras formas de vida, fazendo com que, gradativamente, passem a incluir os animais silvestres em seu círculo de compaixão, reconhecendo seus interesses e contribuindo para desestimular a manutenção de indivíduos em cativeiro doméstico. Aspectos socioculturais também impactam na vida silvestre, uma vez que ainda é relativamente comum a normalização de alguns grupos de animais em cativeiro, como as aves canoras que são mantidas em gaiolas nas paredes de residências e tratadas como objetos decorativos.
Esses animais vivem em recintos extremamente pequenos e em condições precárias de bem-estar. Uma das maneiras de tentar transformar essa triste realidade é a conscientização somada a ferramentas de fiscalização.
Ações para desestimular o comércio de animais e combate ao tráfico
O tráfico de vida selvagem é um crime que alimenta um comércio cruel, em escala mundial. De alguma maneira, pode ser considerado um dos maiores desafios para a proteção da vida silvestre por envolver uma sequência de acontecimentos e uma série de personagens. Desde o indivíduo que retira o animal da natureza e antes dele chegar a um comprador final, pode haver uma série de atravessadores que participam dessa ilegalidade. E muitos desses contatos são feitos por aplicativos de mensagem e redes sociais. Por isso, é tão importante o mapeamento desses perfis pelas autoridades e um trabalho de sensibilização dos usuários para que denunciem publicações que anunciam a venda de animais e não adquiram animais silvestres em hipótese alguma.
Outro ponto que suscita um debate ético e legal é que animais provenientes do tráfico podem acabar sendo assistidos por profissionais especializados, como médicos veterinários e biólogos. Esses profissionais têm o dever legal e moral de zelar e prover cuidados. Entretanto, também devem, a partir de suas prerrogativas profissionais, denunciar irregularidades e, sempre que possível, desestimular a manutenção de animais silvestres em cativeiro.
Os gestores municipais podem implementar ou expandir iniciativas de fiscalização, em colaboração com órgãos estaduais de fiscalização ambiental e o Ibama, visando combater o comércio ilegal. Contudo, o comércio legal também pode estimular a aquisição de animais silvestres, contribuindo indiretamente para o fortalecimento do mercado paralelo de espécies retiradas da natureza.
Outra iniciativa necessária são os centros de triagem e reabilitação (Cetras) para indivíduos apreendidos do tráfico ou do cativeiro doméstico. Nas condições de maus-tratos severos, há necessidade de atendimento e reabilitação antes de serem devolvidos à natureza, caso estejam em condições.
Ampliação do serviço de fiscalização e combate à caça
Todos os municípios, em especial aqueles que possuem áreas de vegetação conservadas, podem realizar fiscalizações preventivas em áreas de risco para impedir ação de caçadores ou verificar animais em situação de risco. Também podem, no âmbito municipal, realizar ações integradas com o policiamento ambiental e até mesmo com o Ibama.
Parcerias com o terceiro setor
As ONGs podem ser importantes aliadas dos municípios na proteção dos animais silvestres. Muitas organizações têm corpo técnico qualificado para oferecer suporte a projetos voltados a educação e conscientização que podem ser replicados nos municípios. Além disso, há organizações que possuem recursos para contribuir em projetos locais, como mapeamento da fauna, instalação ou melhoria de Cetras e também no financiamento de projetos de conservação e no suporte para a destinação de animais apreendidos e que precisam de reabilitação.
Parcerias com o setor privado
Segundo dados do IBGE, o Brasil possui 5.570 municípios, divididos em pequeno, médio e grande porte. Essa classificação tem base no tamanho da população. Cidades de pequeno porte possuem até 20 mil habitantes e estão localizadas, especialmente, no interior do país. São a maioria dos municípios brasileiros, representando cerca de 70% do total. As cidades de médio porte são aquelas que possuem estrutura urbana intermediária, certa especialização econômica e população estimada entre 20.001 a 100 mil habitantes. Os municípios de grande porte têm população de 100.001 a 500 mil habitantes e são cidades consideradas com importância regional e infraestrutura mais avançada e com economia diversificada.
Considerando este cenário, muitas dessas cidades possuem recursos escassos ou não possuem infraestrutura para o resgate e a reabilitação dos animais de vida livre vítimas de acidentes, tráfico ou maus-tratos. A falta dessa infraestrutura e as longas distâncias até centros de reabilitação regionais podem reduzir as chances de recuperação dos indivíduos. Por isso, nesses casos, é importante incentivar parcerias com clínicas veterinárias privadas e médicos veterinários locais, com treinamento específico para a prestação de socorros para garantir o suporte básico e as condições de transporte dos animais até Cetras mais próximos.
Considerações finais
Os municípios podem e devem atuar para a proteção dos animais silvestres. Há inúmeras iniciativas possíveis para a construção de políticas públicas locais que considerem ações efetivas de educação ambiental, fiscalização do comércio de vida silvestre e promoção de unidades de conservação. A defesa dos animais silvestres exige esforço e cooperação de todos: municípios, Estados, governo federal e sociedade civil.
Fonte: Fauna News