Após dois anos de intensas negociações, 196 países que integram a Organização das Nações Unidas (ONU) concordaram com um Marco Global para a Biodiversidade, com o objetivo de frear a perda acelerada de espécies e proteger ecossistemas vitais para a nossa segurança alimentar e econômica.
O documento foi publicado nesta segunda-feira (19/12), após 13 dias de negociações em Montreal durante a 15ª Conferência das Partes da Convenção da ONU sobre Diversidade Biológica, a COP15.
O texto tem 23 metas que deverão ser alcançadas até o final desta década. A principal é proteger 30% das terras, oceanos, áreas costeiras e águas interiores (rios, reservatórios, várzeas, etc.) até 2030 em todo o mundo, e restaurar 30% dos ecossistemas já degradados – por isso, foi apelidada de 30 por 30.
“É o maior compromisso global da história com a conservação das áreas terrestres e aquáticas”, afirmou Brian O’Donnell, diretor da organização Campaign for Nature.
Outro ponto importante do acordo é o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais e da sua importância para a preservação da natureza.
Um dos temores dos povos indígenas era de que a meta de conservação de áreas e restauração de ecossistemas fosse usada para expulsar populações tradicionais de seus territórios de origem. Um levantamento da Iniciativa Rights and Resources mostrou que, entre 1990 e 2014, mais de 250 mil pessoas de 15 países foram expulsas de suas terras após elas serem sido transformadas em áreas de proteção.
“Estamos satisfeitos que abordamos a experiência que os povos indígenas têm em relação à conservação da natureza. Embora não seja a redação exata que propusemos, é um bom compromisso”, diz Jennifer Corpuz, representante do Fórum Indígena Internacional de Biodiversidade, que representa mais de 10 mil povos indígenas em todo o mundo. A redação inicial proposta pelo movimento era a de que terras indígenas fossem consideradas um tipo de terras protegidas.
“Não só no Brasil, mas no mundo todo, os povos indígenas são os guardiões mais eficazes e conhecedores da natureza. O reconhecimento explícito de seus direitos, territórios e conhecimento como a melhor forma de proteger a biodiversidade no texto final é um marco importantíssimo”, diz Paulo Adário, estrategista de campanhas sênior do Greenpeace Brasil.
Fundo de compensação
Um item que provocou grande discordância entre os países foi a criação de um fundo para compensar povos indígenas e comunidades tradicionais pelo uso de recursos naturais e saberes tradicionais por países e empresas, como as indústrias farmacêutica e de cosméticos.
Esse fundo, chamado Acesso e Repartição de Benefícios, foi criado, mas segundo especialistas as regras de seu funcionamento ainda estão vagas.
“Teremos um fundo dos recursos genéticos da biodiversidade [princípios ativos extraídos de plantas, frutos, etc. para uso comercial], está decidido. Mas como será esse fundo e como ele será governado e operacionalizado será definido em dois anos, na COP16”, diz Carlos Rittl, conselheiro sênior em política da Fundação Rainforest Noruega (RFN).
Segundo relatos de quem esteve nas reuniões a portas fechadas, os países que bloquearam as negociações até o penúltimo dia da COP15 foram os da União Europeia e o Japão, que se opunham às metas de criação de um fundo de financiamento da biodiversidade pelos países desenvolvidos.
Experiência brasileira
O Brasil já tem em vigor uma normativa semelhante à do fundo de compensação, que foi mencionada durante as negociações em Montreal como um exemplo – imperfeito – de política pública para remunerar os povos indígenas e comunidades tradicionais pelo uso da biodiversidade.
É a chamada Lei da Biodiversidade, de 2015, que criou um fundo de repartição de benefícios. Essa norma determina que as empresas devem pagar às comunidades tradicionais e indígenas pelos recursos naturais e genéticos retirados dessas áreas para exploração.
A lei brasileira estabelece que essas populações devem ser previamente consultadas e consentir antes de qualquer uso de seus recursos naturais. Após a exploração econômica de produto ou de material genético, deve ser repassado 1% da renda líquida obtida com a venda do produto ao Fundo Nacional para a Repartição de Benefícios, que depois transfere o valor às comunidades indígenas ou tradicionais de onde o recurso foi retirado.
Cristiane Julião, indígena do povo Pankararu e cofundadora da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade, estava na COP15 e falou sobre a lei brasileira, à qual faz ressalvas. “Uma repartição de 1% é uma quantia vergonhosa. Deveria ser a partir de 1%, pelo menos. Estamos falando de um conhecimento tradicional passado de geração a geração, construído por centenas de anos”, diz.
O Ministério do Meio Ambiente também esteve na COP15 para apresentar a lei brasileira. O atual ministro da pasta, Joaquim Leite, contudo, não compareceu.
Karen Oliveira, diretora para Políticas Públicas e Relações Governamentais da TNC Brasil, avalia que a criação de um fundo de compensação pela COP15 poderá pressionar o Brasil a aprimorar a sua norma sobre o tema.
Outras metas
O acordo também estabelece que os os países deverão eliminar progressivamente ou reformar até 2030 os subsídios que prejudicam a biodiversidade. Oliveira afirma que, nesse ponto, estão incluídos incentivos dos governos ao uso de agrotóxicos, o que deve impactar também o Brasil – um dos campeões em uso de pesticidas.
O texto prevê ainda que os países desenvolvidos repassem 20 bilhões de dólares ao ano a nações mais pobres por meio de um fundo de biodiversidade, quantia que deve ser elevada para 30 bilhões de dólares anuais de 2026 a 2030.
Além disso, o documento estabelece como metas:
● Reduzir a quase zero a perda de áreas de alta importância para a biodiversidade, entre elas, a Mata Atlântica brasileira.
● Reduzir pela metade o desperdício global de alimentos.
● Reduzir “significativamente” o consumo excessivo e a geração de resíduo.
● Reduzir pela metade o uso e os riscos ao meio ambiente decorrentes do uso de pesticidas e produtos químicos altamente perigosos na agricultura.
● Prevenir a introdução de espécies exóticas invasoras e erradicar ou controlar espécies exóticas invasoras em ilhas e outros locais prioritários.
● Exigir que empresas e instituições financeiras grandes e transnacionais monitorem, avaliem e divulguem de forma transparente seus riscos, dependências e impactos sobre a biodiversidade por meio de suas operações, cadeias de suprimentos e de valor.
Fonte: DW