“Pouco importa que os primeiros passos pareçam pequenos. Aquilo que se faz bem feito se faz para sempre”
Henry D. Thoreau
Há muito recebo de alguns leitores a seguinte questão: “como assim pioneiro no ensino de direitos animais e veganismo em escolas públicas no Brasil? Conheço um professor vegetariano que toca no assunto em sala de aula há pelo menos 15 anos”.
Bom, eu também conheço docentes vegetarianos (na verdade, protovegetarianos de longa data) que “tocam no assunto” do comer ou não carne vez ou outra em sala de aula. Após o lançamento do documentário A Carne é Fraca, ficou mais fácil para esses docentes, seguirem a metodologia do quando der eu passo, quando der eu toco no assunto da carne. Essa carne, citada em aula, não é colocada nem no plural para incluir outras espécies para além da bovina.
Vamos aos esclarecimentos. Primeiro não fui eu que me intitulei pioneiro no ensino de veganismo e direitos animais no ensino médio brasileiro, foram alguns amigos teóricos do movimento animalista no Brasil que o fizeram. Segundo, acredito que esse título é devido à diferença substancial que existe entre os docentes que há mais de uma década “tocam no assunto” em uma ou duas aulas quando o tema (carne) é adequado ao que já vem sendo trabalhado em sala de aula. Por exemplo, um professor de geografia aproveita as aulas sobre os desafios ambientais contemporâneos para citar o impacto da pecuária sobre os lençóis freáticos, rios e lagos; ou, a professora de biologia que aproveita as aulas sobre a classificação dos seres vivos (taxonomia) para explicar que o ser humano não é um carnívoro, não está no topo da cadeia alimentar e que é apenas mais um animal entre tantos outros do reino animalia; ou, o professor de educação física que aproveita uma aula sobre a importância de uma alimentação saudável para quem se dedica a uma prática esportiva e, cita que a dieta vegetariana é a mais saudável para um atleta.
A questão é: eu não cito o vegetarianismo, ele faz parte do meu conteúdo programático (currículo trabalhado) anual, e fica bem claro para os alunos que vegetarianismo é uma dieta que exclui todos os produtos de origem animal do prato. Tanto é que minhas aulas mais polêmicas no mês sobre a ética da alimentação são as que falam sobre o malefício do leite animal e seus derivados, às fêmeas de outras espécies, por lhe ser roubado, aos humanos que os consomem e ao meio ambiente.
E meu foco não é o vegetarianismo, ele é uma parte do conteúdo trabalhado, é apenas a parte dietética do veganismo. Meu objetivo é a apresentação e discussão sobre o modo de vida vegano como fundamento ético dos direitos animais. Durante os quatro bimestres do ano letivo eu trabalho os direitos animais (ética animal) através dos principais conceitos desenvolvidos dentro desse recorte bioético como: especismo, veganismo, experimentação animal, ética, moral, princípio da igualdade na consideração de interesses semelhantes, bem-estarismo, senciência, vulnerabilidade, agência e paciência moral, abolicionismo, dorência, valor inerente, esquizofrenia moral, deveres indiretos e outros. Algures eu dedico uma aula específica para cada conceito, alhures introduzo-os dentro das aulas críticas dedicadas às varias formas de exploração como para alimentação, entretenimento, estudos e pesquisas científicas, vestuário e companhia doméstica.
Acredito que o pioneirismo está no trabalhar a educação vegana formal e os direitos animais de maneira sistemática, como conteúdo programático anual. Eu não passo um vídeo quando dá, eu não cito o “malefício da carne vermelha” quando dá, eu não “toco no assunto” quando dá; eu apresento e discuto o fundamento ético da abolição de toda exploração e coisificação dos outros animais de março a novembro.
Assim como Althusser, “peço desculpas aos professores que, em condições assustadoras, tentam voltar contra a ideologia, contra o sistema e contra as práticas que os aprisionam, as poucas armas que podem encontrar na história e no saber que “ensinam”. São uma espécie de heróis. Mas eles são raros, e muitos (a maioria) não têm nem um princípio de suspeita do “trabalho” que o sistema (que os ultrapassa e esmaga) os obriga a fazer, ou, o que é pior, põem todo seu empenho e engenhosidade em fazê-lo de acordo com a última orientação (os famosos métodos novos!). Eles questionam tão pouco que contribuem, pelo seu devotamento mesmo, para manter e alimentar esta representação ideológica da escola…”1
Acredito que “são uma espécie de heróis” os que tentam voltar contra o aparelho ideológico especista escolar. Com todas as barreiras existentes devemos enfrentar ou recuar?2 Diante do hercúleo habitus especista escolar, da “história transformada em natureza”3, sabemos que muitos docentes, “apesar de haver uma formação específica, formal, profissional, para exercer a docência – e mesmo supondo que todos os professores recebessem uma excepcional formação, com fundamentação teórica crítica e sólida –, quando eles se deparam com a prática escolar, interna e externa à sala de aula, e diante dos imprevistos e desafios que surgem, a tendência de reproduzirem o modelo que vivenciaram é muito mais forte do que a de realizarem tentativas de uma nova prática, um método diferente. Aqueles que inicialmente insistem em pressupostos e práticas distintos dos estabelecidos na instituição escolar, além de serem coagidos mais ou menos sutilmente pelos pares a não se destacar, são também desestimulados por aqueles que estão há mais tempo no sistema, no sentido de que é muito menos doloroso aceitar, acomodar-se à situação, do que lutar contra ela. Assim, a inércia do sistema estabelece-se, e as mudanças, quando ocorrem, são lentas e penosas, em especial para aqueles que as propõem e tentam implementá-la.”4
Sim, é lento e penoso, principalmente com essa metodologia do “quando dá eu passo, quando dá eu toco no assunto”, já passou da hora dela ser abandonada. Assumam a educação vegana formal, não como um método novo (como o criticado por Althusser), o que ela não é, e sim como uma nova prática de ensino, fundamentada no raciocínio ético, numa ética genuína.
No ano de 2010 tive a oportunidade de perguntar para os norte-americanos Rynn Berry, Marti Kheel e Gary Francione se tinham conhecimento de docentes do ensino médio americano (high school) que desenvolviam um trabalho semelhante ao meu (apresentação e discussão sobre o veganismo e direitos animais durante todo o ano letivo) e todos responderam que não conheciam ninguém, nunca ouviram falar em algo parecido, e o professor Francione ainda completou dizendo que tal trabalho é inviável nas escolas estadunidenses. Também fiz a mesma pergunta a alguns veganos de países latino-americanos e a resposta também foi negativa.
Infelizmente nos últimos anos eu não soube de nenhum outro docente do ensino fundamental ou médio brasileiro que tenha reformulado o currículo de sua disciplina para que o fio condutor do ano letivo seja o veganismo e os direitos animais. Espero que o mais rápido possível novos docentes veganos de todas as disciplinas se engajem numa educação vegana formal. Ser o pioneiro é uma coisa, ter o monopólio de tal prática é outra. Docentes veganos de todo o país, uni-vos!
Notas
1. ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado. Rio de janeiro: Edições Graal, 1985, 2º edição. p.80-81.
2. DENIS, Leon. Educar para o veganismo: enfrentar ou recuar? In: WWW.sociedadevegana.org/
3. Cf. Terry EAGLETON comentando o habitus bourdieusiano em “A ideologia e suas vicissitudes no marxismo ocidental”. In: ZIZEK, Slavoj (org). Um Mapa da Ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. p.223.
4. GONÇALVES, Nadia G. Pierre Bourdieu: educação para além da reprodução. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. p.73-74.