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RECONHECIMENTO

Como as mulheres executam um papel crucial, porém ainda invisível, na restauração florestal

26 de agosto de 2025
Marcela Amorim, Camila Barbosa, Luciana Medeiros Alves e Juliana Brandão
7 min. de leitura
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Foto: WRI Brasil

Gracionice Costa da Silva Corrêa sabe que ser mulher na Amazônia não é uma tarefa fácil. Conhecida como Graça do Sindicato, ela é agricultora, agroextrativista, educadora popular e liderança comunitária no assentamento agroextrativista Deus é Fiel, em Portel (PA).

Desde a infância, vive em contato com a floresta e os rios, aprendendo com os saberes de sua família. Atuou como professora voluntária, liderou resistências contra a grilagem e a extração ilegal de madeira desde os 14 anos e foi a primeira mulher a presidir o sindicato local.

Graça fundou viveiros comunitários com mulheres da comunidade, coordenou mutirões de restauração e capacitou outras lideranças para gestão territorial e sistemas agroflorestais. Seu trabalho impacta dezenas de famílias no Marajó e no Pará, promovendo autonomia financeira, combate à violência de gênero e soberania alimentar.

“Ser mulher na Amazônia não é nada fácil”, diz Graça. “Mas é resistência. É por essa resistência que ainda existe floresta, bioeconomia, e os produtos que alimentam a sociedade brasileira.”

Graça é um exemplo do papel crucial que as mulheres desempenham na cadeia da restauração de paisagens e florestas. Apesar disso, as mulheres continuam enfrentando barreiras estruturais como a falta de reconhecimento, o acesso restrito a recursos e financiamentos, e a exclusão dos espaços de decisão. Ainda que sejam a maioria em diversas etapas da restauração, são minoria quando se trata de governança, políticas públicas e alocação de investimentos.

As mulheres e a restauração de paisagens e florestas

A restauração de paisagens e florestas tornou-se uma das principais estratégias globais de enfrentamento às mudanças climáticas, sobretudo após a proclamação da Década da Restauração (2021–2030) pela ONU. Além disso, a restauração pode ser feita aliada a produção de alimentos e produtos florestais não-madeireiros, se transformando numa importante fonte de renda do campo.

A restauração de paisagens e florestas em larga escala depende do envolvimento das pessoas. Isso é reconhecido nas políticas públicas atuais no Brasil. O Plano Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa (Planaveg), que tem como meta a recuperação de 12 milhões de hectares, destaca estratégias voltadas à promoção da inclusão e da participação das diferentes contribuições de mulheres, jovens e anciãos ao longo da cadeia da restauração.

No caso das mulheres, não é apenas o exemplo de Graça que mostra o impacto de um trabalho invisível e desigual. Estudos recentes mostram que empoderar mulheres ao longo da cadeia da restauração tem efeitos transformadores: aumenta a renda familiar e comunitária, fortalece sua independência econômica, amplia sua capacidade de decisão dentro e fora de casa, reduz os índices de violência de gênero e melhora as condições de vida das famílias. Trata-se, portanto, de uma estratégia comprovada de alta eficiência, que combina justiça, sustentabilidade e impacto social.

Mas ainda há uma importante lacuna de equidade a ser enfrentada. Um estudo recente da Embrapa Florestas mostra que houve avanços em políticas de promoção da diversidade de gênero no setor, mas as barreiras persistem como o domínio masculino, a insegurança no trabalho de campo e vieses de gênero.

Mas os estudos também mostram que, se esses desafios forem enfrentados com medidas concretas, o benefício vai para além da equidade.

Segundo relatório da FAO de 2024, fechar as lacunas de gênero em zonas rurais poderia aumentar em 1% o PIB global e garantir segurança alimentar a 45 milhões de pessoas. Além disso, dados do Banco Mundial mostram que programas liderados por mulheres produzem impactos sociais e ambientais mais profundos e sustentáveis. Ou seja, investir em igualdade de gênero no campo não é apenas uma questão de justiça social, mas uma estratégia econômica e ambientalmente eficiente.

Conexões entre gêneros e justiça ambiental

O ecofeminismo oferece uma perspectiva complementar e transformadora para entender a interdependência entre a preservação da natureza e a valorização das mulheres. Autoras como Maria Mies e Vanda Shiva propõem que a lógica de exploração ambiental e a marginalização de saberes femininos compartilham raízes comuns em modelos de desenvolvimento que desconsideram o cuidado, os vínculos com o território e a diversidade de conhecimentos.

Sob esse olhar, o cuidado com a natureza, a cooperação e a valorização de saberes tradicionais são fundamentos para construir sociedades sustentáveis. O ecofeminismo propõe reconhecer formas diversas de produção de conhecimento, especialmente aquelas enraizadas em práticas locais e em experiências de mulheres que vivem e transformam seus territórios.

Na prática, essa visão está presente em inúmeras experiências. No Brasil, as mulheres Ikpeng, da Rede de Sementes do Xingu, são responsáveis por 65% da coleta de sementes da rede. Seus saberes têm promovido a restauração de mais de 6.800 hectares, gerando renda e fortalecendo a autonomia comunitária. Com práticas ancestrais e gestão coletiva, essas mulheres demonstram que o protagonismo feminino é peça-chave para o sucesso da restauração.

Empreendedorismo e afetividade

Para além das atividades no campo, as mulheres também ocupam papéis estratégicos e políticos na restauração. Elas participam da elaboração de projetos, da gestão de cooperativas e da articulação com redes e movimentos sociais.  Elas trazem inovação e empreendedorismo para a restauração florestal.

“Ser mulher na restauração é uma honra, mas também um grande desafio.” A frase de Bárbara Pacheco, CEO da Verde Novo Sementes Nativas, resume o que vivem milhares de mulheres no campo. Coletora de sementes e restauradora de biomas, ela relata as dificuldades de empreender com um mercado historicamente masculino.

Bárbara é bióloga formada pela Universidade de Brasília. Após uma trajetória diversificada em educação ambiental e manejo da fauna, entrou para o universo da restauração ecológica em 2011, na Embrapa Cerrados. Lá, trabalhou com recuperação de áreas mineradas, matas ciliares e produção de mudas. Em 2017, fundou a Verde Novo, hoje um negócio de impacto socioambiental liderado por mulheres.

A empresa atua com restauração ecológica de ponta a ponta, desde a coleta de sementes até a semeadura direta, além de oferecer cursos e oficinas para comunidades e instituições públicas. Validada pela BNDES como modelo de impacto, a Verde Novo já contribuiu para fortalecer redes de coletoras de sementes em vários territórios.

“Ainda somos minoria nesse espaço. Imagina o desafio que é quebrar essas barreiras, vencer medos e atuar sozinha no campo. […] A gente fala de escala, mas não vai ter escala sem afetividade. Esse futuro que tanto se sonha pode estar vindo das mãos de mulheres que foram a vida toda invisibilizadas. Mas é bonito saber que são elas que estão fazendo tudo acontecer”, destaca Bárbara.

Da retórica à prática: caminhos para a equidade de gênero na restauração

Reconhecer o papel das mulheres na restauração florestal significa alinhar-se a compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, como os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), especialmente o ODS 5, que trata da igualdade de gênero e do empoderamento de mulheres e meninas. No nível nacional, esse compromisso se expressa na meta 4.3 do Planaveg, que busca incluir mulheres e jovens em toda a cadeia produtiva da restauração.

No entanto, essa inclusão exige mais do que intenção: requer reformas estruturais que garantam às mulheres acesso a recursos econômicos, participação efetiva em espaços de decisão e valorização de seus saberes e práticas locais.

Fortalecer o papel das mulheres na restauração florestal significa ir além da sua caracterização como mão de obra. É preciso reconhecê-las como gestoras de territórios, biodiversidade e conhecimento. Isso passa pela criação de políticas públicas com recorte de gênero, apoio direto a iniciativas lideradas por mulheres e garantia de mecanismos de remuneração justa.

Visibilidade e protagonismo

Investir em mulheres e meninas do campo é investir em uma economia de baixo carbono, baseada na justiça social e ambiental. Para isso, é fundamental que organizações, governos e empresas se comprometam com o fortalecimento da visibilidade e da remuneração justa das mulheres em todos os elos da cadeia da restauração. Porque isso significa também, garantir segurança para que essas mulheres possam atuar e liderar sem medo, e fomentar redes que fortaleçam sua organização e articulação.

Mais do que reparar uma dívida histórica, visibilizar o protagonismo feminino na restauração é uma condição para que ela seja, de fato, transformadora, justa e duradoura. O bem-estar da floresta é também o bem-estar de todos nós, e o caminho para isso precisa, necessariamente, passar pelas mãos, vozes e decisões das mulheres.

Fonte: WRI Brasil

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